“Nenhuma mulher mais, independente da cor, ficará calada enquanto houver outras violentadas. Violeta é cor que marca a luta da resistência ao roxo que ocê deixou”. Os versos fazem parte do poema "Sem medir fala", escrito pela poeta, slammer, ativista e educadora social Nívea Sabino, e que norteiam a campanha do Março Lilás na FURG.
"O tempo do indígena é circular, e a literatura indígena acompanha esse tempo"
"O Nudese devolve para a sociedade os empréstimos que ela deixa para a FURG"
"Priorizar a ciência aplicada à solução de problemas urgentes é o caminho"
Autora do livro "Interiorana" (Padê Editorial, 2016), Nívea é natural de Nova Lima/MG. Graduada em Comunicação Social, a autora possui uma trajetória de ativismo poético voltado ao enfrentamento ao racismo, à lesbofobia, ao sexismo e outras formas de opressão, através da palavra, pelos saraus de periferias.
Articula a RodaBH de Poesia e é mulher pioneira nas competições de poesia falada (slams) em Minas Gerais. É também membra fundadora da Academia Nova-limense de Letras. Em 2019 foi co-curadora do Festival Literário Internacional de Belo Horizonte, com a temática #NarrativasVivas; esteve como jurada do Prêmio Jabuti 2020 na categoria "Poesia"; participou em 2022 da Mostra de Poesia Mineira | Confluências Poéticas em Barcelona, na Espanha; assina o Conselho Editorial da Coleção Ouvido Falante | Editora Impressões de Minas; realiza trabalhos em dramaturgia, canto-poema e possui a oralidade poética como fundamento artístico.
Nesta entrevista, Nívea conta sobre sua caminhada, inspirações e processo de escrita - e defende que a arte é uma ferramenta de sensibilização que "pode modificar trajetórias de vida".
Quando você decidiu que queria se tornar escritora, e como foi a descoberta de que a poesia era o seu modo de expressão? Como se deu esse encontro com a literatura?
Eu fui laçada pela palavra durante a minha caminhada, e ouvir a expressão “você é poeta” foi se tornando cada vez mais recorrente. Eu me fiz poeta sem perceber. Eu tinha o hábito de presentear as pessoas sempre com um bilhete ou uma cartinha acompanhando o presente e, nessas situações, eu adolescente e jovem na vida, ouvia as pessoas me dizerem que eu escrevia bem, que eu era uma poeta. Essas cartas e bilhetes repercutiam mais do que os próprios presentes.
Lembro de, na infância, eu ter sido muito atravessada pela poesia que era falada e cantada – principalmente nas rádios. Eu possuía uma coleção musicada de livros infantis que foram o meu xodó: eu sentava na frente da vitrola com os livros e ficava ouvindo, imaginando, observando as ilustrações do encarte do disco de vinil. Eu lia vinil. Anos depois eu conheci os saraus de periferia, passei a frequentar, e na sequência vieram as competições de poesia falada – os slams.
Esses espaços me possibilitaram experimentar, são arenas de experimentações artísticas. A escrita se tornou frequente bem antes desses acontecimentos, passei a escrever muito no período da minha vida em que eu precisei derrubar o “mito da meritocracia” (à medida que a minha consciência racial crescia). Me perceber no mundo e compreender os acessos e não acessos a que eu estaria sujeita me fizeram passar anos em silêncio, escrevendo, refletindo -isso entre os anos de 2006 e 2009, logo após me formar na Faculdade de Comunicação – neste período eu alimentava um blog na Internet. Em 2010 eu conheço o Coletivoz Sarau de Periferia e passo a recitar esses textos que foram escritos no blog.
O que te inspira a escrever?
Eu sou poeta da oralidade, escrevo e performo o meu próprio texto – ergo a voz e a palavra na busca de ser contemplada. Me interessa a palavra viva. A principal motivação passa por querer viver e experimentar da vida. Gosto de poetizar a simplicidade, falar de comida, trazer as tradições do meu povo pro verso: eu sou de uma família com tradição de congado, marujada, fui criada num terreiro vasto, com muita planta, horta, pomar, bichos. Ouvi muitas serenatas cantadas pelo meu pai nas madrugadas da vida. Me inspira essa poesia capturada no cotidiano das gentes: desde apreciar o cheiro marcante de uma fruta, como a mexerica; poetizar o gosto de um caqui maduro e, também, a querer trazer para o espaço de um poema a peleja de sermos trabalhadores no Brasil, a baldeação no transporte público, o preço da passagem, a notícia do dia, a neblina que cai quase toda manhã na minha cidade que é Nova Lima/MG.
Como você avalia seu desenvolvimento como poeta? Mudou algo no seu processo de escrita desde o início?
As oportunidades que eu tenho experimentado de elaborar o meu texto poético noutras linguagens artísticas – teatro, música, cinema, etc, têm feito com que eu mergulhe no universo da oralidade ainda mais - pesquisa no campo das oralituras, junto à convivência com fazedores de arte de diversas áreas; ter acessado os espaços e as cidades que eu conheci através da minha palavra, ter viajado para fora do Brasil, certamente tudo isso reflete na maior qualidade do meu texto hoje.
O hábito de escrever durante a viagem de ônibus – eu moro numa região metropolitana da capital mineira, as viagens sempre foram momentos de escrita e leitura pra mim -, esse hábito permanece. Geralmente escrevo em praças públicas, bares - gosto de observar o momento da cidade e das pessoas enquanto escrevo.
Gosto de escrever com o rádio ligado, ouvindo podcasts (conhecimentos gerais e noticiários). Algo que eu percebo que altera o meu processo com a escrita é, sem dúvida, o acesso demasiado às redes sociais – Internet de modo geral. Escrevo menos e de maneira bem mais direcionada -por demanda, do que eu escrevia dez anos atrás. O desemprego e a vulnerabilidade econômica – principalmente durante e pós pandemia, interferiram bastante nos meus processos com a escrita.
Eu já fui servidora pública e foi o período em que eu escrevi mais na vida, inclusive o meu livro vem deste período. Um país devastado coloca a arte em suspensão.
Como você vê o papel da poesia na luta pela visibilidade negra e feminista? Pode contar um pouco sobre o seu trabalho nessa área?
Eu inicio o meu livro, Interiorana, com a frase "A poesia falada não vive presa na livraria" e encerro dizendo "Te apresento em versos a maior luta armada". O primeiro verso do meu livro diz: "não creia em perfeito/ o seu feito/ é o seu jeito".
Acredito que o maior ganho tem sido incidir no imaginário popular através de outras narrativas, outros personagens e outras poéticas. Quando muda o narrador, muda-se a perspectiva de olhar sobre a história contada e insere-se, assim, outros modos de fazer e pensar o mudo. A arte é uma ferramenta de sensibilização, marca o tempo e a época e pode modificar trajetórias de vida. Fazer a discussão de direitos humanos através da arte fez com que eu escrevesse grande parte dos meus poemas. Eu sou uma poeta forjada pela educação popular, pelo desejo de dialogar.
Qual sua análise sobre o aumento dos mais diversos tipos de intolerância no país? Vivemos tempos mais violentos no Brasil?
Permitir que pessoas extremistas ocupem cargos de decisão, permitir que sejam eleitas, tudo isso agrava um cenário que é de violência institucional. O impacto dessa violência é que é maior. O Brasil enfrenta o descrédito das suas instituições.
Um país que beira a linha da miséria já é violento por si só. O que há, também, é uma veiculação maior da violência. A violência gera audiência, likes, visualizações e lucro. A espetacularização e o sensacionalismo é que cresceram, à medida em que é possível rentabilizar a violência sem qualquer legislação que interfira. O Brasil não fez a regulamentação das mídias e o resultado é este espetáculo bárbaro – real e virtual. Quando permitimos que as instituições, sob as formas da lei, sejam os agentes das violências, o país regride em termos de direitos de cidadania. Perder a cidadania é viver em guerra. Há uma guerra em curso no nosso país. Não creio que seja maior, creio que o retrato do Brasil hoje condiz muito mais com a realidade do que a falácia de que 'o Brasil é um pais cordial' - não, não é. Acho positivo perceber quem somos, como agimos uns com os outros e, talvez, a partir daí possamos reerguer uma nação aonde caibam todas as pessoas. O Brasil é racista, um país com forte cultura da violência e assumir isso, talvez, seja a tarefa mais urgente na direção da mudança.
Como fazer com que mais autoras pretas ganhem espaço no ambiente acadêmico? Como democratizar mais a literatura feita por elas?
Sabemos as respostas. Avançamos nas legislações e a luta por equidade racial no Brasil é contínua, vem de longe. Falar em possibilitar o acesso e a permanência de estudantes, em diversificar a comunidade acadêmica, possibilitar que outras narrativas sejam escritas, nada mais é do que chover no molhado, são caminhos dados, já foram ditos. Nós sabemos essas respostas. Falta ao Brasil agir, se envergonhar, abrir precedentes de punição nesta esfera. Quem compõe o corpo das instituições são as pessoas. Falta, talvez, constranger de fato a branquitude brasileira, responsabilizar. A branquitude precisa ser estudada como um problema social que é, e ser criminalizada nas suas práticas estruturantes. Autores não negros precisam responder a perguntas como essa - pela perspectivas da branquitude, editoras, prêmios literários, as pessoas que respondem por essas instituições precisam ser questionadas. A responsabilidade de construir a equidade racial no Brasil precisa ser uma responsabilidade coletiva, não somente das populações atingidas como tem sido.
Você poderia citar escritoras negras que influenciam sua obra?
Grace Passô – atriz de pensamento sagaz, dramaturga e pessoa que eu admiro muito ver performar a palavra. Os textos da Grace são de uma poética preciosa e vê-la performar o próprio texto é inspirador - tanto para pensar a escrita quanto para a elaboração no campo da performance do texto.
Gosto e acompanho o pensamento da poeta, pensadora e professora Leda Maria Martins, é quem cunha o termo “oralituras” pra dizer de como os povos originários inscrevem no espaço. Compreender as artes negras pelo olhar de Leda é outra preciosidade do nosso tempo.
Quero citar duas compositoras que me encantam bastante, uma vive em Belo Horizonte, é a Dona Eliza, matriarca da Velha Guarda do Samba Mineiro. Dona Eliza é compositora de mãos cheias, escreve os seus sambas ainda de maneira manuscrita e os guarda em cadernos. É riqueza nossa.
Outra inspiração é ver Lia de Itamaracá fazer ciranda a vida inteira. Eu ouço Lia prestando muita atenção nas letras das cantigas. Me inspira muito essa simplicidade de cantar a vida e cantar pelo bem viver.
Ser contemporânea dessas mulheres interfere no meu modo de pensar e elaborar arte completamente e de maneira muito positiva.
Nívea Sabino - Destaques
2012 - 1° lugar Concurso Municipal de Poesias | PMNL Prefeitura Municipal de Nova Lima/MG
2013 - 2° lugar Concurso Municipal de Poesias | PMNL Prefeitura Municipal de Nova Lima/MG
2016 - Prêmio Zumbi de Cultura | Cia Baobá Minas
2016 - Campeã do Slam Clube da Luta
2019 - Homenageada na ALMG – Assembleia Legislativa de Minas Gerais. CDH Comissão de Direitos Humanos
2023 - Autora do verso que se tornou viral na internet: “bater a laje/ no céu da boca/ dos nossos sonhos” exibido em letreiro luminoso /Festa da Luz ART (BH).
2023 - Homenageada da 12ª Temporada da Segunda PRETA