Oferecido pela Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard (T.H. Chan School of Public Health), o programa internacional colaborativo Harvard – Brasil é constituído de um curso intensivo de três semanas, cujo objetivo é abordar temas específicos em saúde pública com prevalência e expertise no território onde será realizado. Em 2025, o curso foi ofertado em parceria com a Universidade Federal do Ceará (UFC), e aconteceu durante o mês de janeiro, em Fortaleza, CE. Um dos tutores do programa é o professor do curso de Psicologia da FURG, Lauro Demenech, que possui uma relação de longa data com o programa.
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Ao mesmo tempo, foi aquela oportunidade que abriu esse contato com a equipe realizado, além de toda a experiência baseada numa troca cultural internacional, que é significativa. Em seguida, passei no concurso para atuar como Técnico-administrativo em Educação na FURG; foquei nos dois anos seguintes no trabalho e acabei um pouco afastado da área acadêmica. Por volta de 2017 estava com uma sensação de que aquela experiência que tive em Fortaleza anos atrás tinha sido engrandecedora, mas sentia que não tinha aproveitado tudo o que poderia. Aí tive a ideia de mandar um e-mail despretensioso para a coordenação do curso, explicando meu desejo em colaborar de forma voluntária, e, logo em seguida, recebi um retorno positivo. Assim passei de aluno para monitor”, explica o professor.
De monitor para orientador
Segundo Lauro, em função de não estar em um programa acadêmico, sabia que não poderia participar novamente do curso como aluno, e, portanto, ofereceu-se como voluntário, e se pôs à disposição conforme fosse possível. “Fui nesta segunda experiência dando suporte; eu conhecia a dinâmica do curso e entendia as suas etapas e como ele se desenvolvia. E assim fui realizando um trabalho que tinha uma importância. Naquela ocasião, tive a oportunidade de auxiliar um grupo sobre como transitar entre essas muitas demandas para que, ao final do curso, os estudantes pudessem entregar e apresentar um projeto robusto e alinhado com o que era esperado”, detalha o professor.
“Recentemente, estava trabalhando em um artigo científico com a professora Márcia Machado, da Universidade Federal do Ceará – e uma das coordenadoras do curso. Eu nem tinha visto que a seleção para a edição 2025 estava aberta. Nós estávamos conversando sobre o artigo e, em uma dessas conversas, ela me comentou que, neste ano, o curso seria realizado, mais uma vez, em Fortaleza. A professora gostaria que eu participasse, dessa vez como professor advisor, mas o curso em si não tinha recursos para me levar.
Comecei a ir atrás dos recursos necessários em todos os espaços possíveis, e consegui o apoio da FURG, por meio dos dois Programas de Pós-graduação que trabalho. Ao lado da professora Anya Vieira Meyer, coordenamos e orientamos o grupo de violências urbanas”, completa Lauro.
Impacto social e importância do sistema de saúde brasileiro
Amplamente reconhecido por seus esforços inovadores para reduzir a mortalidade infantil e infantil nos últimos 15 anos, de acordo com a coordenação internacional do curso, o Ceará é um importante polo para estudos em saúde pública, considerando o sistema de saúde brasileiro como uma referência mundial de acesso e garantia aos direitos humanos e atendimento de qualidade para todos. Durante a última edição, os estudantes participantes puderam experienciar na prática as Políticas de Saúde nacionais, por meio do trabalho em grupo focado na resolução de problemas, com o auxílio de palestras, discussões e visitas técnicas.
Ao todo foram selecionados 15 estudantes brasileiros e 15 estudantes internacionais, de diversas nacionalidades, vinculados à Harvard. Entre os temas abordados estiveram: desenvolvimento infantil, tuberculose, oropouche, violência e gestão pública em saúde; os tópicos são trabalhados com a finalidade de analisar criticamente os fatores ambientais e socioeconômicos no Brasil associados à alta prevalência e distribuição geográfica de doenças e outras preocupações importantes de saúde pública, além de também preocupar-se com a identificação de características populacionais como status nutricional, imunidade, grau de exposição associado à epidemiologia das doenças e o impacto desses fatores na morbidade e mortalidade das doenças.
Por fim, os estudos realizados pelos estudantes – divididos em grupos focais – são compilados e lapidados para efetivamente promover colaborações acadêmicas duradouras e projetos de pesquisa conjuntos entre a universidade de Harvard e os participantes brasileiros, fortalecendo redes pessoais em todo o país e, também, internacionalmente.
Em 2025, o curso foi ofertado pela 17ª vez; e, anualmente, é realizado em alguma capital brasileira, que, por sua vez, recebe 30 estudantes para debater políticas públicas de saúde com foco voltado para a expertise do território onde se passa. Metade desses estudantes vêm dos Estados Unidos, com vínculo ativo junto à Harvard, buscando conhecer o sistema de saúde do Brasil. A outra metade são de pesquisadores brasileiros, com nível de pós-graduação - ou pessoas que trabalham no sistema de saúde com background em pesquisa.
Tratando-se do legado deixado pela realização do curso no território onde é realizado, a coordenadora Márcia Machado, em entrevista para o portal FURG.br destaca:
“O impacto é sempre muito grande, porque há um grande envolvimento de gestores locais, como governador, prefeitos, deputados, vereadores e, principalmente, pesquisadores da academia. Durante as atividades da última semana de trabalho, esses gestores tomam conhecimento dos estudos realizados e dos dados levantados, e assim, participam junto das suas equipes de um seminário final de apresentação desses projetos; e muitas dessas pesquisas acabam recebendo fomento por parte dessas lideranças e tomadores de decisão”.
De acordo com Lauro, a primeira semana do curso se constitui de aulas magnas, palestras com autoridades nos assuntos abordados no programa e exercícios de contexto para começar a entender o sistema e as políticas públicas que o regem. De forma geral, anualmente, cinco grandes áreas constituem a programação do curso, e, anualmente, são adaptadas à localização em que acontece; em 2025, um dos grandes focos foi o desenvolvimento infantil, por exemplo, que é uma pauta de extrema importância para o estado. Outra área adaptada ao contexto foi Violência Urbana; tópico que o professor Lauro atuou como orientador.
Segurança Social e Saúde Pública no contexto da Violência Urbana
“Eu orientei o grupo de violência urbana, que se propõe a pensar sobre o tema não apenas na perspectiva da segurança social, mas na perspectiva da saúde pública. Então, como é que a gente faz para mitigar os efeitos da violência na vida das pessoas que vivem nessas localidades? Esse questionamento é um pouco de onde o nosso trabalho partiu.
Primeiro, a gente tentou entender um pouco como se desenvolveu a violência nos últimos 25 anos no Ceará. O que a gente mapeou foi uma questão histórica, envolvendo a migração de algumas facções do crime organizado para o nordeste”. De acordo com Lauro, hoje existem sete facções atuantes no estado, o que representa um fator de alto estresse para a segurança pública.
“Ao longo dos últimos anos, o Estado empregou força bruta no combate à essas facções, o que se provou de certa forma não só ineficiente, mas também um fator de aumento da violência urbana”, completa o professor.
O primeiro passo do grupo consistiu no mapeamento e avaliação dos últimos 25 anos, acompanhando índices e indicadores como a evolução das taxas de homicídio, tanto em Fortaleza quanto em outras cidades do Ceará. Com isso, buscou-se entender o como se dá o padrão da distribuição da violência no Estado, considerando fatores práticos e históricos.
“Observamos um fenômeno de irradiação de violência, provenientes de polos. Esses polos estão bastante associados a regiões historicamente mais pobres, desiguais e com histórico de violência. No Nordeste, além de toda questão relacionada à escravidão, houve também os impactos da grande seca, que fez com que as pessoas que viviam nas regiões afetadas pela secada, migrassem para os grandes polos em busca de melhores condições de vida; no entanto, esses polos não queriam receber essas pessoas.
Essa resistência criou verdadeiros campos de concentração para impedir a entrada desses retirantes nos grandes polos. Esse ambiente criou condições de vida e subsistência péssimas, o que justifica o histórico de pobreza e de desigualdade que está associado geograficamente às taxas de violência observadas. Nosso grupo estudou e analisou esses dados de forma bastante detalhada; criamos vários gráficos e chegamos a essa conclusão de que há uma descentralização da violência no Ceará”, detalha Lauro.
O grupo também se debruçou sobre questões de prevenção à violência, com base nas visitas de campo e no aparelho nacional de saúde, abordando principalmente questões pertinentes à primeira e à segunda década de vida de um indivíduo; seja por meio da criação de oportunidades e no investimento em assistência social sem prejuízo do investimento injetado em segurança.
O resultado das pesquisas desenvolvidas por esses estudantes foi entregue à Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, além de entregue também para algumas autoridades tomadoras de decisão. Ao todo, a equipe orientada pelo professor Lauro consistia de três estudantes de internacionais e três pesquisadores brasileiros.
Embora não faça parte do grupo coordenado pelo professor Lauro, um dos participantes que mais se aproximou do docente foi o mestrando em Epidemologia da Public Health School de Harvard, Manav Shankar Sinha, que detalha:
“O programa é uma verdadeira expressão de colaboração intercultural, promovendo a saúde pública por meio da resolução prática de problemas e trabalho em equipe. Em apenas três semanas, adquiri o equivalente a um semestre de treinamento, enfrentando desafios reais ao lado de uma incrível turma de profissionais.
Apesar das diferenças culturais e profissionais, especialistas e estudantes, desde médicos até cientistas de dados, trabalharam juntos para desenvolver soluções/pesquisas inovadoras que não apenas eram globalmente relevantes, mas também profundamente contextualizadas às realidades locais. Como trainee em Epidemiologia Social, a experiência reforçou uma verdade fundamental para mim: contextos sociais e clínicos são inseparáveis na saúde pública. Nossos mentores e orientadores garantiram que cada solução fosse cientificamente sólida e socialmente afinada.
Além do aprendizado, o programa promoveu vínculos duradouros, e uma dessas conexões foi com o professor Lauro. Um ex-participante que retornou como orientador; sua expertise interdisciplinar e entusiasmo rapidamente o tornaram um guia inestimável e um favorito entre os estudantes. Seus insights garantiram que nossas soluções fossem não apenas rigorosas academicamente, mas também práticas e culturalmente relevantes. Trabalhar com Lauro foi um prazer, e eu, juntamente com vários outros participantes, já estou ansioso por futuras colaborações com ele. Sua mentoria realmente enriqueceu minha experiência no programa”.
Uma experiência transformadora
Por fim, Lauro recobra a importância que a sua vivência junto ao curso teve – e continua tendo – para a sua vida pessoal e profissional; em especial, o professor atribui ao programa uma profunda transformação na forma com que enxerga e pratica a docência. “E essa última experiência foi muito interessante, porque a gente sempre fica tentando mensurar qual é o nosso nível; particularmente, queria me testar também. Eu saio desse curso com uma relação muito boa com os colegas, professores do Brasil inteiro que estavam lá também; com os professores de Harvard; mas, sobretudo, com os alunos”, pontua o professor.
“Muitos me procuraram depois, pedindo orientações sobre coisas específicas de carreira, por exemplo. Inclusive, estou atualmente trabalhando em outro projeto com alunos de Harvard que continuaram em contato comigo. Acho que foi uma experiência que me mostrou a potência do impacto que a gente pode ter dentro da FURG, porque nos mostra que não são apenas professores e pesquisadores vinculados a grandes universidades, em termos de história e alcance, que podem causar impactos na sociedade; a gente também pode, e pode transformar cada vez a nossa Universidade em uma instituição tão forte quanto essas referências que temos”, completou Lauro.
Márcia corrobora com essa visão ao comentar sobre as trocas que o curso oferece. “Os estudantes de Harvard, quando visitam o sistema de saúde brasileiro, ficam realmente bastante admirados. Não se trata de uma relação em que apenas os pesquisadores brasileiros se beneficiam pela proximidade de uma instituição centenária, é um processo mútuo de aprendizagem”, destaca a coordenadora.
“Todo esse processo me abriu muito a perspectiva de pensar os problemas sociais dentro dos contextos regional, cultural e histórico, e, por consequência, ampliou muito a forma com que eu faço as minhas perguntas de pesquisa e como eu organizo as minhas disciplinas. Para mim, foi algo transformador, e espero, ao contar essa história, também inspirar estudantes, técnicos e professores da nossa Universidade a passarem por transformações como essa, tal como eu vivi”, conclui Lauro.