Foi há quase 50 anos, em 1972, em Estocolmo, que a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente declarou o 5 de junho como o Dia Mundial do Meio Ambiente. De lá para cá, de acordo com ONU, a população mundial praticamente dobrou, a economia mundial quadruplicou e o comércio cresceu quase dez vezes. Chegamos em 2020 com o mundo todo lidando com a Covid-19 que, como aponta a organização, evidenciou que, “ao destruir a biodiversidade, se destrói o próprio sistema que sustenta a vida humana”.
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Desde 2009 a própria ONU criou um grupo para discutir justamente essas relações. Chamado Harmony With Nature, o grupo é composto por cerca de cem especialistas em ecologia dos mais diversos países. Entre os representantes brasileiros no grupo, está Antonio Liborio Philomena, professor aposentado da FURG.
O reconhecimento internacional como um especialista em relações harmoniosas com a natureza e o meio ambiente é resultado de uma vida dedicada ao estudo, atuação e militância ecológica. Philomena foi aluno da primeira turma de Oceanologia da FURG. “Eu já nasci querendo ser ocenógrafo”, contou em conversa com a Secom em julho de 2019. Por isso correu de Porto Alegre, onde morava, para Rio Grande quando soube do primeiro vestibular para o curso na FURG. “Como Oceanografia é uma ciência sistêmica, tu tens que enxergar a atmosfera, enxergar rios, e eu me encantei pela Ecologia”. Começou com a ecologia marinha, mas o estudo pelo tema o levou a se interessar pelo Cerrado, pela Amazônia, pelos rios. “Aí vi que eu não podia mais ficar dentro da Oceanologia e pedi pra ir pro Instituto de Ciências Biológicas. Foi uma surpresa para muita gente”, lembra, remontando a 1988.
O doutorado, cursado nos Estados Unidos, foi sobre como a economia impacta na Lagoa dos Patos. “Porque a economia tem essa força, ela faz girar uma rodinha, que essa rodinha para funcionar suga a natureza”.
Na conversa com a Secom, Philomena conta sobre o trabalho de perícia ambiental que teve início ainda no começo de sua carreira como docente, mas que aprofundou após sua aposentadoria. No Estado Philomena batalha pelos direitos das abelhas, ameaçadas pelo uso de agrotóxicos e, em Santa Catarina, pela liberdade das baleias em seus berçários, vítimas de exploração turística. Com atuação marcante após a tragédia da Vale em Mariana, com um processo judicial em nome do Rio Doce, é que veio o convite para fazer parte do grupo da ONU. O Harmony With Nature nasce a partir da designação do Dia Internacional da Mãe Terra e advoga por uma visão menos antropocêntrica em nosso ser-estar no mundo. “Alguns países conseguiram colocar em sua constituição que a natureza é um sujeito – não humano, mas um sujeito, e como tal tem direitos”, conta. No Dia Mundial do Meio Ambiente, confira trechos dessa conversa:
Vivemos um período muito delicado, político, social ambiental. E parece que há pouca resistência popular. Como o senhor vê esse cenário?
É uma pequena parte da população brasileira se preocupa com o meio ambiente. Para contrapor e para reforçar, a população brasileira gosta de dinheiro. Existe esse dado. Então, a gente vê. Tem um rio e tem dinheiro. O brasileiro é consumidor, quer ser mais, tem muito apreço pelo dinheiro e não considera a natureza que tem. Tanto que uma grande expectativa que eu vi nascer, da questão da educação ambiental, ela não chegou nem perto de onde a gente pensou que chegaria, porque é difícil, é difícil a educação ambiental.
E a que a gente poderia atribuir?
Nós somos um mundo ainda do nosso umbigo. A gente não conseguiu levantar a cabeça e olhar o que tem ao nosso redor e saber que nós fazemos parte de vários setores dessa natureza. E como fazemos parte, nós somos iguais. [É enganosa] Essa história de que a gente é melhor, que pode dominar, que pode destruir – e se quiser esticar um pouquinho mais - que nós somos feitos à semelhança de alguma coisa.
Na apresentação do Harmony With Nature se fala bastante disso, de pensar numa perspectiva não tão antropocêntrica. Como vocês têm pensado em saídas para tentar fazer esse debate?
Primeiro, todo mundo que está ligado nessa discussão sabe que isso é uma ousadia. Porque se as coisas mais simples não deram certo, como a educação ambiental, ou disciplinas de Ecologia, se isso aí não deu certo, então se deu um passo à frente e não um passo atrás. Um passo à frente em entender como é que alguns países conseguiram colocar na sua Constituição que a natureza é um sujeito – não humano, mas é um sujeito e como tal tem direitos. É muito simples. Fiquei pensando como é que esses países conseguiram. Primeiro Equador, depois Bolívia, Paraguai, México. Imagina, estão nos dando de relho, como se diz aqui no Rio Grande do Sul. Porque eles têm uma representatividade de indígenas muito grande, e são muito respeitados. Então por incrível que possa parecer, tá lá na Constituição deles: a mãe natureza - que eles chamam de Pachamama - tem direitos. E a justiça funciona. Aqui, ao se propor uma ideia como essas, já seria barrada de antemão, com os lobbies ligados ao agribusiness.
Há várias reuniões desse grupo da ONU a cada ano. Tem um encontro grande que é na ONU, que reúne todo mundo, e tem outras reuniões menores. Teve uma reunião de gestão ambiental há algum tempo em Campinas, por exemplo, e lá teve um dia que foi só sobre direitos da natureza. Se fez uma carta e mandamos para as Nações Unidas para eles traduzirem e para constar das atividades do grupo.
São poucas pessoas ainda. Experts independentes, são 128, principalmente aqui da América do Sul, da América Central. Tem da Espanha. Mas é muito concentrado aqui, e tu vê que é a questão da Pachamama, que aqui no Brasil eu até teria dificuldade de dizer quem é, sem ser no nosso palavreado normal: a natureza, a mãe natureza. Quem seria? Gaya? Ou seria Tupã? Nós nem discutimos, mas nos Andes já é comum, Pachamama.
Nosso grande marco aqui foi um processo que a gente entrou com o Rio Doce como sujeito. Na mesma hora do acidente em Mariana, nós entramos com um processo, que começava assim: “Eu, o Rio Doce...”. Ele ficou na mão da juíza por dois anos e no fim [perdemos], a gente mais ou menos esperava, mas abrimos a porta. Ela disse que não tinha apoio na Constituição e realmente não tem nada na Constituição que dê direito. Tem algumas coisas escondidas ali que nós estamos trabalhando, mas explícito, como Estado, como Equador, Bolívia, nós não temos ainda.
Aí começaram a pipocar pequenos exemplos. Eu estou querendo fazer força agora para a questão dos direitos das baleias, já que elas são maltratadas, e são desrespeitadas [em Santa Catarina, onde aparecem no inverno para parir e amamentar os filhotes no berçário e estabeleceu-se um turismo agressivo]. E se achou, por bem, que nós tínhamos outro rio já preparado para pedir os direitos. No Equador, o primeiro passo foi num rio. Que deu certo, inclusive. Um rio tem o direito de ser limpo, de ter peixe, de ser transparente, de as espécies, inclusive o homem, poderem se banhar, beber. Aí chega uma empresa e faz o que a Vale fez...
Eu estive em Mariana várias vezes, e estive também em Brumadinho. De Brumadinho eu voltei traumatizado. Eu já vi muita coisa, imagina, eu comecei em 1971 a mexer com essa parte ecológica, científica, e de ativismo. Então eu vi muita coisa. Agora, eu voltei traumatizado de Brumadinho. Ali eles ganharam o prêmio. O prêmio de demolidor da natureza como um todo. E quando eu digo natureza, o homem tá dentro, ele não é um ser especial. Natureza, ecossistema, o homem, mais uma espécie, ele tá dentro, eu penso assim.
No último dia em Brumadinho, cancelei uma coisa que eu tinha e fui visitar aquele lindo museu que tem lá, o Museu de Artes. De tão chateado que eu fiquei das coisas que eu vi. Como é que pode? Não sobrou nada. Se fosse uma bomba, ainda tinha coisa que se salvava. Mas aquilo ali foi, olha... E o que que acontece com a Vale, desde Mariana? Não aconteceu absolutamente nada.
No caso de Brumadinho, tem também alguma ação também?
Não, está muito complicado, as pessoas não conseguem chegar. Eles não permitem.
E desde quando que o senhor faz parte desse grupo da ONU?
Desde o caso de Mariana.
Como foi o convite?
Foi uma surpresa para mim porque eu profissionalmente já não ligava mais para questão de currículo, prestes a me aposentar. Aí de uma hora para outra vem assim esse baita convite. No mundo inteiro são pouco mais de cem pessoas.
E dá para a gente ter uma pontinha de esperança para um futuro, nem que seja longe?
A gente batalha para isso né. Eu tenho netos, me preocupo. E também vejo o seguinte: eu não vou muito mais longe. Por mais que me doa, eu vou me dedicar a outras coisas. Eu fui músico quando era jovem, tinha a banda Sul Som na década de 1970 em Porto Alegre. A música faz aliviar essas tensões todas. Agorinha mesmo, antes de sair, tinha 15 minutos, liguei o teclado e toquei um pouco.
Professor que conselhos podes dar para as gerações futuras, como é que a gente pode virar essa roda, o que a gente poderia dizer?
Que é difícil, mas que é fundamental: o respeito aos direitos da natureza. Eu não vejo outra saída.
E como a gente pode ter esse respeito quando as lógicas da vida em sociedade levam sempre ao consumo?
Por conta de serem a nova geração, os mais jovens vão ter que ter o desafio de quebrar esse paradigma. Para nós aqui já é mais difícil. A gente já é viciado nisso, mas eles, que ainda estão por se educar, eles ainda podem ter a chance de ter essa nova visão.