Poeta, artista, professora, psicóloga. Mais recentemente, fotógrafa. Há muitos modos de descrever Daniela Delias, a patrona da 47ª Feira do Livro da FURG. Atenta aos detalhes, às paisagens, à contemplação, transforma suas percepções em palavra, com uma intensidade que permite a quem a lê um mergulho pelas águas que a inspiram.Quando se “esvaziou” de palavras, buscou na fotografia uma outra forma de comunicar. É autora de três livros de poesia, Boneca russa em casa de silêncios, Nunca estivemos em Ítaca, e o lançamento Alice e os dias.
Em sua atuação como professora de Psicologia da FURG, a palavra também tem lugar central. A escuta do outro. O dizer de si. Com estudantes e colegas da academia, criou o Coletivo Escuta na Rua, como forma de democratizar a escuta, dar a palavra e romper com a invisibilidade.
Nesta entrevista, Delias conta mais sobre como começou a escrever, a relação de sua escrita com a Psicologia, suas inspirações, a entrada em cena da fotografia e as expectativas para a 47ª Feira do Livro.
A Feira do Livro tem início na noite desta quarta, 29, na Praça Didio Duhá, no Balneário Cassino. As atividades na praça iniciam às 19h e a abertura oficial será às 21h, seguida de um cortejo com o grupo TIA e de apresentação com a Banda Rossini. Na quinta, 30, será a noite da patrona e Delias dialoga sobre sua produção literária a partir das 20h, no Espaço Literário.
Como a poesia entrou na tua vida? Como leitora e também quando começaste a escrever.
Essa é uma coisa que eu penso seguidamente, porque é difícil a gente definir quando começa a relação com a escrita, ou com a poesia mais diretamente. Eu tenho alguns registros de memória que são anteriores à escrita da poesia, mas que me parece que já tinham uma relação. Eu lembro muito de paisagem – e que hoje acho que eu retomo pela fotografia –, de estar caminhando com meu avô por Pelotas, pela praia do Laranjal e ele mostrar pequenas coisas, tipo: olha a formiguinha, olha esse peixe, esse pássaro, mostrando as coisas do mundo que talvez na correria do dia a dia a gente não pare muito para olhar. E acho que a poesia tem um pouco disso, uma certa parada, um certo recorte no andamento das coisas para que tu olhes com um outro olhar, para que tu digas de uma outra forma.
Por volta dos 13 anos eu acho que foi meu primeiro contato com a leitura de poesia. Foi com Mario Quintana, o primeiro autor que eu li e, para mim, apaixonante. Eu achava tão incrível poder dizer de um relógio da forma como ele dizia, construindo a ideia e propondo algo novo. Meu primeiro livro de poesia foi Apontamentos de história sobrenatural, do Quintana. Depois tive acesso às agendas da Tribo que vinham diariamente com poeminhas. Eu me lembro de estar no colégio, no Ensino Médio, e saía da aula sábado ao meio dia e ia na livraria Mundial, em Pelotas e ficava lendo livros na seção de poesia.
Então eu acho que começa assim, muito por esses registros de imagem, por essa relação com afeto. Depois entra a leitura dos outros autores e, por volta dos 13 anos, eu tenho os primeiros registros de escrita minha. Ainda aquela pegada de tentar dizer algo parecido com o que o poeta que tu gostas está dizendo e aquilo se misturando com a tua forma de olhar o mundo. Por volta dos 17 anos comecei a escrever com mais frequência, a mão num caderninho, folhinhas soltas.
Só em 2008, quando eu até já estava na FURG – entrei na universidade como docente no finalzinho de 2006 – e a Cristina Diaz, que era minha colega, em algum momento, alguma conversa nossa, eu disse a ela que escrevia. E ela disse: “guriazinha” – ela chamava todo mundo assim – “eu quero ler os teus escritos”. E aí eu me lembro que montei, eu acho que era Orkut na época, e mandei um escrito e depois fiz um blog, em 2008. Então ali comecei a mostrar o que eu escrevia. O blog se chamava Do lado de cá. E era uma época em que muitas pessoas que escreviam começaram a se comunicar através dos blogs, e isso foi formando uma rede enorme no país. A gente foi conhecendo escritores, escritoras de vários lugares. Hoje não, tu até tens um link para um site, mas a comunicação mudou. Naquela época eram os blogs. E nessa rede a poesia começa a circular, e vai circulando e eu ia escrevendo. Em 2011, eu vi um edital da editora da Tribo, que estava recebendo poemas para a agenda do ano seguinte, e mandei um, e esse poema saiu na agenda. Foi a minha primeira publicação impressa. E aí, nessa mesma época, juntei algumas coisas que tinha escrito e mandei pro Eduardo Lacerda, da Editora Patuá. Para minha surpresa ele respondeu pouco tempo depois: “vamos publicar”. E foi quando a gente fez meu primeiro livro, Boneca Russa em casa de silêncios (2012).
Tu falaste desse teu interesse, da observação aos detalhes, à observação das paisagens. Esse olhar para os detalhes, para o outro, é o que te leva também para a Psicologia?
Sim, eu acho que tem uma relação muito próxima. Eu não consigo pensar uma Psicologia desvinculada da Arte. Parece impossível para mim. Freud tinha uma luta muito grande para que a psicanálise tivesse um caráter científico, porque era muito associada a coisas abstratas e se afastava daquele caráter cientificista que se esperava naquela época, e ele se preocupava muito com isso. Mas a gente vai ler o texto dele e tem trechos que são extremamente poéticos, e ele nunca se disse poeta. E o único prêmio que ele ganhou na vida foi pela qualidade da escrita. Eu costumo pensar assim, que mesmo não se dizendo, ele era um poeta. Acho que a poesia está atravessando as coisas que estão na Psicologia. E, claro, a Psicologia tem áreas distintas, que olham o ser humano de diferentes formas, com técnicas diferentes.
Eu tenho afinidade pela psicanálise e o centro dela é a palavra. É a palavra, é a memória, o afeto, o que tu contas, o que tu tens para dizer de ti. E para mim isso é muito semelhante ao processo poético, à forma como tu vais deixando com que as palavras venham, tentando associar da forma mais livre, daqui a pouco editando, como tu vais fazer daqui a pouco com essas palavras todas. Elas chegam num fluxo e daqui a pouco tu vais tentar dar uma ordem, pensar um pouco sobre elas. E a poesia é assim também. Então eu acho que a escrita de poesia, a leitura de poesia, o processo de criação poética, ele tem tudo a ver com essa possibilidade de dizer de si que tu tens na Psicologia, principalmente na clínica mesmo, na área de psicoterapia, de parar nessa corrida das coisas todas e, como fazia o meu avô, olhar uma formiguinha que está passando e como tu te sentes com aquilo e como aquilo te move.
Em Alice e os Dias tem muitos temas do feminino. Esses temas têm te influenciado? Quais são as questões que te inspiram para a escrita, e como o feminino as atravessa?
Antes eu estava te falando sobre ter começado com Mario Quintana. Eu lembro de ler muito Quintana, mais adiante Paulo Leminski, e isso ter trazido inspiração. Acho que até a voz da gente vai sendo atravessada pelas coisas que tu lês. Incrível porque atualmente os poemas que mais me tocam têm sido escritos por mulheres. Parece que nessa caminhada alguma coisa vai se modificando. Então hoje eu encontro na Hilda Hilst, Alejandra Pizarnik, que é uma poeta argentina, as duas já falecidas, Ana Cristina Cesar. No Nunca estivemos em Ítaca (segundo livro de Delias) vai tendo algumas entradinhas de algumas leituras que fui fazendo, as próprias poetas contemporâneas. Micheliny Verunschk, que fez o prefácio de Alice e os dias, e que é uma poeta contemporânea maravilhosa, muito conhecida nesse nosso meio, ela é incrível. Nina Rizzi, a Ju Blasina, daqui (de Rio Grande). Eu fico pensando que são mulheres que têm essa voz em relação ao feminismo e isso acaba aparecendo nos poemas.
Não é como se eu estivesse buscando isso num caminho avesso, assim do tipo: eu tenho que ler isso. Essas coisas foram acontecendo e a gente vai se identificando. Então eu tenho a impressão que sim, que essa voz de mulher passou a ecoar mais alto. E aí Alice e os dias acompanhou esse processo. Ele tem só 30 poemas, é um livro pequeno, mas levou cinco anos para ficar pronto. Eu nomeei Alice sem nem saber exatamente do que eu estava falando, não foi de caso pensado. Primeiro parecia como se fosse um desdobramento do meu eu lírico, chamando a mim mesma de Alice, mas isso foi só no primeiro poema. Quando eu começo a escrever o segundo, já começo a perceber isso de uma outra forma, que é o meu diálogo com a poesia, a minha relação com a escrita, como a escrita me move, como se eu tivesse dado um nome de mulher à palavra. Então Alice passa a ser os meus dias com Alice, os meus dias com a escrita, os meus dias com a poesia. E a ideia de escrever 30 poemas foi no sentido de como se isso pudesse fazer referência a 30 dias de um mês, a um ciclo. E aí Alice é isso, é a palavra. Tem um poema (A pálpebra) que diz assim “Alice, meu bem/eu não sou você/Eu imagino o peso/Você lambe o gozo”. Eu ali nos dias, mas a poesia tentando retirar algum gozo da vida.
Então a escrita de mulheres para mim é algo impactante. Eu não acho que seja num sentido assim: poesia feminina, como se viu por muito tempo, de mulheres escreverem sobre tal tema. Não é isso: a mulher vai escrever só sobre o amor, sobre estar apaixonada, sobre domesticidades. Não se trata disso. Mas se saber mulher e entender o que isso significa na vida, em estar no mundo. Isso nos coloca num lugar diferente. E aí isso foi acompanhando também todo um movimento. A gente tem um evento agora, Leia Mulheres, que acontece mensalmente em Rio Grande, uma iniciativa no sentido de poder trazer um protagonismo, de poder trazer um lugar num meio que privilegiou desde sempre a escrita dos homens. Em eventos e painéis discutindo literatura, era raríssima a presença da mulher. Então foi preciso marcar esse espaço. E eu acho que as mulheres estão muito alinhadas nesse sentido, as mulheres leitoras, as mulheres escritoras.
Nesse cenário em que estamos vivendo, que passa a ser tão hostil à liberdade e à criação, quais os desafios que se colocam para a mulher artista, a mulher poeta, a mulher escritora?
Sabe que recentemente eu assisti a um vídeo da Zélia Duncan, que andou pela rede. Há alguns dias ela tinha escrito um poema direcionado ao Bolsonaro, falando dessa interdição à liberdade e agora ela – eu fiquei muito tocada – falou para a Regina Duarte. Ela falou sobre a Regina Duarte e falou da Malu Mulher e eu lembro de ter assistido. Eu sou de 1971. Na época em que a série passava na TV eu acho que tinha a idade que a filha da Malu Mulher, a personagem, tinha, e eu me identificava muito. Então eu lembro assim de coisas que a Zélia Duncan falou no vídeo.Um musical, Mulher Oitenta, que foi puxado pela Regina Duarte e tinha a Elis Regina e várias cantoras. E a revolução que era no final dos anos 1970, início dos 1980, ter num programa de TV uma mulher que se separa, que começa de novo, e que transmite esses valores dessa nova mulher para a filha, que é uma pré-adolescente. E eu me lembro que foi a mesma visão que eu fiquei da Regina Duarte também por muitos anos. Então quando eu assisti à Zélia falando eu chorava olhando o vídeo. E é uma coisa de muita desesperança ao mesmo tempo.
A gente está aqui falando, e segue lutando, mas eu acho o cenário devastador. E para mim foi tão devastador de 2018 pra cá que eu me esvaziei de palavra. Eu não conseguia escrever. Não que eu ficasse contando, mas eu até acabei fazendo essa conta no fim do ano, em função do blog, porque aparece lá quantos poemas tu publicaste no ano. Em 2017 eu tive em torno de 40 poemas escritos ao longo do ano. Em 2019, escrevi três poemas. A gente teve recentemente um evento que a Andréia Pires conduziu, que foi o Lida, Literatura Daqui, e estava todo mundo falando disso, que foi um ano muito difícil para escrever. E eu pensei muito nisso, posso falar um pouco do meu lugar. Eu acho que a palavra é desamparo, um sentimento de devastação. E isso acaba impactando na arte. A gente quer resistir pela arte mas ao mesmo tempo se sente muito desesperançado, porque o ataque é muito forte em relação aos artistas.A arte sempre se colocou como resistência, como uma possibilidade de sobrevivência, de existência. E acho que tem sentido ela ser atacada desse jeito.
O que eu encontrei como uma saída, que também não foi planejado, foi que eu comecei a fotografar, no finalzinho de 2018. E aí foi um jeito de manter esse olhar para a poesia das coisas num momento em que a palavra falta. Acho que é um cenário muito difícil. Eu queria ter um pouco mais de esperança. E a gente vai juntando um pouquinho assim pelos cantos, pelos caminhos, vendo pessoas que estão produzindo, que estão escrevendo e estão lutando e que estão à frente dos movimentos sociais, mas é muito difícil.
Que interessante buscar essa saída em outras linguagens, quando a palavra falta.
Eu acho que o artista tem isso, a coisa está ali, pulsando, a gente quer de alguma forma comunicar alguma coisa. Penso que estava tudo acelerado de um lado, essa desesperança, essa loucura toda e às vezes eu estava vendo o noticiário e desligava a TV e pensava: eu preciso andar. Preciso desligar Facebook, Instagram e caminhar. E comprei uma câmera e comecei a andar. E aí tem coisas que tu vês, um pássaro alimentando um filhote dele em pleno voo, ou um pássaro chegando para o outro e ele abre aquele bocão, sabe, aquilo me deu uma força. Acho que me ensina alguma coisa sobre resistência todos os dias. Ou tu vês um bem-te-vi naquela imensidão do Cassino, no inverno. Um bem-te-vi paradinho em frente ao mar assim olhando, contemplando. Acho que é isso que a gente precisa, contemplar um pouco, parar um pouco. Então as fotos me devolveram um pouco do desejo de seguir comunicando algo. É isso que eu tenho buscado na fotografia. De alguma forma as fotos dizem isso para as pessoas: sigam lutando pela sobrevivência, sigam lutando pela arte.
As paisagens sempre te inspirando... No Laranjal, no Cassino. Muita água também.
Eu acho que essa água aparece nos poemas também. Foi mesmo o começo lá na Lagoa, no Laranjal. Agora eu estou quase com 50 anos, vou fazer 49, e aí vem essa coisa do avô, que eu resgato. Essa coisa toda de meia idade, de questionar o meu lugar no mundo.Eu volto a ele, buscando os pássaros, buscando essa calma.
Aqui na Psicologia para mim também esse foi um ano marcante. Então esse silenciamento que eu acho que vem desde 2018 para todos nós, eu encontrei na fotografia um jeito de dizer alguma coisa e, no curso, junto com os alunos, a gente criou o Coletivo Escuta na Rua. As pessoas estão ali caminhando na praça, invisíveis, estão saindo da balsa de São José do Norte, atravessando aquela praça, aí ali no meio tem um quadrinho dizendo “Escuta na Rua – atendimento psicológico”. Elas param e olham: como assim, eu posso falar? Eu posso dizer de mim? Isso é importante para alguém? E para a nossa surpresa, sentam e falam, e se comunicam ali, naquele cenário maravilhoso, um consultório sem teto, sem parede. E pra gente que construiu o coletivo isso tinha tudo a ver com esse momento político também, de tentar ir na contramão dessa invisibilidade. De dizer: digam, falem, contem as suas histórias de vida, elas são importantes. O seu nome é importante, quem tu és, o que tu carregas. Então tem tudo a ver com de um lado, calar, e de outro tentar ouvir e dar a palavra.
A gente vai estar com o projeto na Feira do Livro também, vai ter o Escuta na Feira. Vamos ter um cantinho lá todos os dias, das 20h às 22h. É uma praça também né? A gente tentou assim não se desvirtuar muito da ideia de estar na praça, de estar em um local aberto. É diferente de alguém dizer: tu precisas de um psicólogo. Tu vês o psicólogo ali, se tu quiseres sentar e conversar, a gente está ali.
E como foi para ti receber esse convite para ser patrona da Feira?
Uma baita surpresa, foi engraçado até, porque eu recebi um telefonema que a reitora queria conversar comigo. Eu fiquei muito surpresa mesmo, porque pensei: esses anos todos em que estou aqui. Cheguei em 2006 e o ano estava já terminando, foi outubro, então eu não fui para a sala de aula. Eu fiz concurso, cheguei e fui direto conversar com a Cleuza Dias (reitora da FURG) e com a Cristina Zardo porque o curso de Psicologia estava sendo pensado. Aí fui convidada para trabalhar junto. A Cleuza era pró-reitora de Graduação, na época, então eu trabalhava direto na sala dela, toda a questão da criação, dos processos todos que a gente tinha que fazer, então ficou uma relação muito bonita de lá para cá, mas eu nunca tinha sido chamada, fora esse processo de criação do curso, para uma conversa na sala da reitora. O que será né? Quando ela abriu a porta com um enorme sorriso, veio o Danilo (vice-reitor) atrás dela já sorrindo, e o Daniel (pró-reitor de Extensão e Cultura).Eu pensei: é algo bom. Aí eu entro na sala e estão todos os pró-reitores em círculo e ela brincou e disse: “então, tu trabalhaste junto conosco na criação do curso de Psicologia e a gente está te chamando aqui porque queremos criar um novo curso de psicologia.” E eu já comecei a rir, como assim? Ela disse: “não Dani, brincadeira, a gente quer te fazer um convite e não aceito que tu recuses, que é para que tu sejas patrona”. Eu fiquei super emocionada. Realmente não esperava.
Sabe que teve épocas até que eu pensava assim: acabei me dedicando muito à extensão, menos à pesquisa. A gente vai fazendo alguns caminhos na universidade, e a literatura, de alguma forma, acho que algumas pessoas sempre separam da vida acadêmica. Uma coisa é a literatura, outra coisa é a produção científica. E aí eu acho que no momento em que chega esse convite, alguma coisa junta assim em mim, de pensar: que bonito, isso foi olhado. Eu digo sempre em sala de aula: o livro é importante. Ir ao cinema. Ler literatura fora dos livros técnicos. É importante não só o que disse tal artigo, ou o que propõe tal técnica. É importante também, mas não só isso. E eu acho que no momento em que esse convite chega, eu penso: eu não sabia nem que alguém estava me olhando ou sabia do meu trabalho com poesia, então eu fiquei muito feliz mesmo. E teve uma fala da reitora sobre isso que estávamos falando, sobre a dificuldade que tem sido esses dois últimos anos e sobre as perspectivas para os próximos. E ela disse que achava que algo em mim remetia a uma resistência por uma via mais afetiva e que seria bonito ter isso na Feira, que é uma feira que fala de acessibilidade, que fala de inclusão, que fala sobre histórias de vida, de resistências. Eu não pude dizer que não. O pessoal lá sabia que eu era tímida e ela disse isso: tu vais ter que superar isso e vais estar lá com a gente. E de lá para cá tenho tentado responder a todas as coisas que têm surgido.
E como estás planejando essa participação?
Eu tive um programa de rádio há alguns dias e o Daniel Prado (pró-reitor de Extensão e Cultura, responsável pela Feira) estava junto. E eu disse: seria legal ter um encontro antes da Feira, até para eu saber onde é que eu tenho que ir, o que tenho que fazer, estava um pouco ansiosa. Ele concordou, “vamos chamar uma reunião”. E me recebeu com o violão, cantando. Ele e a Carla (Diretora de extensão). “O que vamos cantar, Carla? Ando devagar porque já tive pressa...”. Eu pensei: é isso. Acho que vão ser 11 dias muito intensos, mas muito bonitos, porque essa feira é muito mais que comercialização: tem muita conversa, oficinas, muita coisa bonita de estar vinculada a uma universidade.Não é só o vender livros, mas é o dialogar com a comunidade, ter a oportunidade de falar das coisas que a gente faz.
Nos outros anos, tu participaste? Como é tua história com a Feira?
Eu sou natural de Pelotas e em 2008 eu me mudei para cá. Desde que moro aqui, todo verão eu vou na Feira, para olhar os livros, assistir aos shows. Mas há dois anos, em 2018, a feira foi direcionada às mulheres. E aí eu lembro que respondi a uma entrevista, saiu no site, eu participei de um sarau que a Ju Blasina chamou também, de mulheres poetas, e foi a vez em que eu tive uma relação mais próxima assim com os eventos mesmo. Eu acho que é uma festa enorme, no meio de uma praia, no verão, algo puxado pela universidade. E a minha relação é essa, como leitora, como alguém que admira e, mais recentemente, com a minha presença nas coisas.
Tu falaste antes de como é importante para os estudantes ler, ir ao cinema, assistir a outras coisas, que vão ampliando os modos como a gente vai conhecendo o mundo. Tu terias dicas para uma pessoa que ainda não é leitora, que ainda não circula muito nesse universo da produção literária, artística, por onde ela pode começar?
Enquanto tu estavas perguntando eu fiquei me lembrando de uma imagem, de estar na frente de casa na infância, e de ter vizinhos, na frente de casa. E me lembrar que as pessoas dizem assim: “ah, hoje ninguém mais se fala, está todo mundo dentro dos condomínios; bom era aquele tempo, que a gente jogava bolinha de gude”, que a gente não sei o quê. Eu sempre penso assim: o nosso tempo precisa ser bom também, a gente precisa encontrar caminhos e talvez não precise sempre colocar esse tempo em oposição ao anterior. Por que eu digo isso? Porque eu acho que algumas pessoas olham para a internet como algo demonizado. Acho que vai trazer sofrimento, vai trazer ansiedade, vai trazer aceleração, mas também vai produzir alguns encontros importantes. Eu digo isso porque no que tu perguntaste, eu pensei assim: hoje como é difícil tu conseguires uma abertura de leitura a partir do livro. Essas gerações que estão chegando estão direto na rede social, olhando o telefone o tempo inteiro. Então eu acho que as redes são um lugar importante para esse encontro com a literatura. Tem muitos autores escrevendo e publicando no Facebook, mais preocupados em poder divulgar sua arte e compartilhar, do que necessariamente colocá-la no papel. Por exemplo, quando Alice e os dias, o último livro, foi se fazendo, eu pensava assim, do penúltimo (Nunca estivemos em Ítaca) pra ele: talvez eu não publique mais, porque não é necessariamente o papel que importa; para mim, era poder continuar escrevendo e divulgando, e tinha essas plataformas.
Então se tu escreves um poema e coloca ele ali no Facebook, tem pessoas que gostam de ler e que vão encontrar. Teu poema vai encontrar um leitor. Então eu diria isso, o bacana é estar no telefone, ou na tela do computador, e poder dar a chance de encontrar algumas páginas, alguns sites que sejam direcionados à poesia. A ideia é isso, tu poderes descobrir, entre as pessoas com as quais tu estás convivendo, quem está escrevendo, quem está produzindo. Eu acho que os autores que são famosos, que se tornaram famosos e que são inspiração para muitos de nós, são importantes e continuam sendo. Mas tem muita gente aqui viva escrevendo. Tem muita gente aqui da cidade escrevendo. Então acho que é buscar na sua cidade quem são as pessoas que estão escrevendo, mas não brigar com a rede. Se dá para ir no computador, dá para olhar o passarinho. As redes trazem encontros também.