COVID-19

Distanciamento social muda rotina das Casas do Estudante Universitário

Moradores das CEUs contam como tem sido ficar em casa durante a pandemia

Photograph: Divulgação

O ano letivo estava em andamento há apenas duas semanas quando as primeiras consequências da pandemia de Covid-19 afetaram a Universidade Federal do Rio Grande (FURG).  Assim que a Organização Mundial da Saúde (OMS) elevou o estado da disseminação do novo coronavírus ao status de pandemia, o Comitê de Monitoramento do Coronavírus da Universidade se formou e um Plano de Contingência foi imediatamente construído e adotado. Supercontagiosa e desconhecida, a doença rompeu a rotina acadêmica e não há previsão de retorno à normalidade. Sem remédio comprovado ou vacina desenvolvida para combater o vírus, o único método eficaz e globalmente recomendado para evitar a propagação é o distanciamento social.

As aulas foram suspensas a partir de 16 de março e o trabalho administrativo foi adaptado quase que todo ao modo remoto como medidas preventivas. Ficar em casa é a orientação geral, certo? Certo. Contudo, a ciência não para. O conhecimento a serviço do coletivo é sempre da ordem da essencialidade. Pias automatizadas, software que simula evolução de casos, máscaras face shield, rodo para desinfecção hospitalar e fabricação de álcool glicerinado são algumas das inúmeras ações que a comunidade acadêmica da FURG mobilizada, dentro dos procedimentos de segurança, vem criando para promover alternativas de combate à doença desde que as atividades letivas foram interrompidas e o perigo real de contaminação chegou aos municípios do Rio Grande do Sul.  

Mas e quem mora na universidade, como faz? Aprende o novo jeito de viver a FURG e se adapta como é possível, com acompanhamento de perto da Pró-reitoria de Assuntos Estudantis (Prae). Durante a pandemia, cerca de 160 estudantes permanecem em nove Casas do Estudante Universitário (CEUs) nos campi em São Lourenço do Sul, Santa Vitória do Palmar e sede. Em Rio Grande, dentro e fora da universidade, são sete CEUs ocupadas no momento. O hotel de trânsito, que abriga perto de 40 pessoas, entre elas intercambistas e pós-graduandos, é a mais populosa.

Primeiros dias de distanciamento social nas CEUs
“Quando a pandemia começou a tomar vulto [na segunda semana de março], a gente passou a conversar com os estudantes que tinham condições familiares e psicológicas de retornar às suas casas, nos seus Estados. Nosso intuito era diminuir o fluxo dentro das Casas do Estudante”, conta a pró-reitora de Assuntos Estudantis, Daiane Gautério. Na época, a FURG mantinha casas com até 70 residentes, oriundos de várias partes do país. “Se a gente continuasse com essa quantidade de estudantes por ala, nosso grande medo era uma contaminação em massa”. Para quem foi viável voltar para casa em sua cidade antes que o contexto da pandemia o retivesse em Rio Grande, a FURG proporcionou auxílio-viagem, com reembolso de passagens. Os que optaram por ficar sabiam que teriam assistência através da Prae.

O contato da Prae com os moradores das CEUs continua bem próximo, embora menos presencial. Quem ficou segue tendo acesso às refeições no campus, mas o trânsito nos restaurantes universitários foi restrito. O café da manhã é retirado no RU e consumido na CEU, o almoço e a janta são entregues em marmitas nas casas. Um auxílio mensal de R$200 foi concedido aos residentes para casos de emergência, como compras de alimentos e medicamentos e eventualmente deslocamento a postos de saúde. Atendimento psicológico, pedagógico e em assistência social online para moradores de todas as casas de estudante têm sido oferecidos. A gestão da Prae e os diretores das CEUs têm conversa permanente no grupo do Whatsapp, onde são tiradas as dúvidas e construídas as novas rotinas das casas.

Para a pró-reitora, os residentes têm se saído bem na organização das novas rotinas. Ela relata que eles definem, por exemplo, um dia na semana para compras de mercado, elegem quem vai sair, devidamente protegido com máscara, e fazer compras por todos, e depois cuidam da higienização do que foi adquirido. Nos primeiros dias de distanciamento dois casos suspeitos de Covid-19 foram identificados nas CEUs em Rio Grande, ambos testaram negativo, mas o fato deixou os moradores em alerta desde o começo. Por solicitação dos estudantes e encaminhamento da Prae, as casas recebem semanalmente kit de higienização, com itens como álcool gel, sabonete, sabão, água sanitária, para que eles possam manter os espaços das casas higienizados. E máscaras, que em geral chegam aos residentes por doação. O Instituto de Letras e Artes (ILA), o Instituto de Educação (IE) e também pessoas da comunidade têm confeccionado máscaras e doado para várias frentes de combate ao coronavírus na FURG, entre elas as CEUs. “É uma demanda que não para porque é preciso renovar o estoque de máscaras, então a gente precisa de mais”, explica a pró-reitora, que tem buscado também doação de roupas de inverno para os estudantes residentes. “Agora está vindo um período bem intenso de frio e muitos estudantes não estavam preparados para ficar retidos nas casas”.

Prevenção, saúde e bem-estar dos residentes
Além de assistência para cumprir os protocolos de prevenção à Covid-19, os moradores das casas do estudante contam com um conjunto de serviços voltados à promoção da saúde mental como retaguarda. A Prae mantém atendimento permanente às CEUs. De manutenção em chuveiros e torneiras a necessidades psicológicas de estudantes, todas as demandas das CEUs chegam à pró-reitoria e recebem os devidos encaminhamentos através da Coordenação de Alojamento, Alimentação e Transporte Estudantil (Caate) e da Coordenacão de Bem Viver Universitário (CBVU) da Diretoria de Assistência ao Estudante (DAE), que cuida das Casas de Estudante, Alimentação, Transporte e Bem Viver do Estudante da FURG. A Diretoria de Desenvolvimento do Estudante (Dides), responsável pelas ações afirmativas, de pagamento de bolsas e de atendimento direto ao estudante, vem atuando principalmente em formato home office. A gestão faz expediente presencial restrito nas terças e quintas no Campus Carreiros.

Aliada no acompanhamento, a Diretoria de Atenção à Saúde (DAS), da Pró-reitoria de Gestão de Pessoas (Progep) orienta sobre questões da Covid-19 e auxilia no monitoramento de saúde dos residentes. A Unidade Básica de Saúde da Família (UBSF) do Caic é o posto de referência para atendimento dos moradores das CEUs de Rio Grande. Nos dos demais campi, o posto de saúde mais próximo no município deve ser procurado em caso de manifestação de sintomas. “A gente tenta proteger [os residentes], mas eles também precisam se distrair, porque a gente não sabe quanto tempo vai durar esse período de isolamento e a gente também não tem essa ideia de quando vai ser o retorno às aulas. Acho que é importante que eles possam ter essas condições mínimas de saúde mental mesmo, de esporte, de lazer... Como não conseguimos fazer o que a fazíamos antes, oficinas, encontros, cafés, que reuniam muita gente, acho que vamos ter que pensar em alternativas mesmo que online, às vezes um vídeo, um filme, alguma coisa nessa linha”, diz a pró-reitora de Assuntos Estudantis. Não há ainda previsão de volta às atividades presenciais, segundo a última atualização do Plano de Contingência da FURG

De acordo com Daiane, a FURG vê com preocupação o fato de que algumas empresas começam a retomar suas rotinas e, consequentemente os estágios. Estudantes moradores das CEUs que retornaram a suas cidades e que estagiavam nessas empresas não devem voltar a Rio Grande agora. “Os alunos que estão nas suas casas precisam ficar nas suas casas, tomando todos os cuidados necessários. O retorno deles [à FURG] precisa ser planejado pela universidade. A gente não pode ter um estudante que está fora do estado e simplesmente retorna para a casa porque isso vai colocar tanto ele quanto os estudantes da casa em risco”, explica. Eles poderão vir “somente quando a universidade autorizar. Porque a universidade vai ter um monitoramento desses alunos, um retorno adequado, talvez com teste sorológico e medição de temperatura, encaminhamentos adequados da comissão de saúde. Eles vão ser orientados sobre o retorno às aulas e às casas com todo cuidado e a proteção necessária”, reforça. A FURG não recomenda nenhum deslocamento em aeroporto e rodoviárias. Outra orientação é a de que as CEUs não recebam visitas enquanto durar o distanciamento social em função da pandemia.

Além do suporte aos residentes das CEUs, através da Prae a universidade também apoia cerca de 450 estudantes em vulnerabilidade socioeconômica com kits de auxílio alimentação emergencial e refeições do R.U., entre eles os que são oriundos de outros municípios do Rio Grande do Sul e Estados do país, não moram nas CEUs e permanecem em Rio Grande durante a pandemia.

Uma experiência na CEU 126
Para cada residente o impacto da pandemia é relativo, considera Carlos Alexandre Foletto, acadêmico do curso de Engenharia Civil Empresarial e morador da CEU 126. “Para algumas pessoas não houve grandes mudanças, mas outros acabam por sofrer um pouco mais com a quarentena, como os frequentadores de igreja, os de academia, os cinéfilos, os [assíduos] das dependências da FURG (estágios, estudos, etc.), e, é claro, os de eventos. Nesse sentido para amenizar essas barreiras, alguns estudantes se organizaram e passaram a fazer exercícios e esportes dentro da CEU, estudar por conta própria, criar hábitos de leitura, cozinhar, participar de cultos online”.

A parte mais difícil do distanciamento social “acredito que seja a questão psicológica”, diz. “Assim, em grande parte devido à maneira como esse isolamento ocorreu: de forma inesperada para alguns. Querendo ou não ninguém esperava que a Covid-19 chegaria ao Brasil tão cedo ou mesmo chegaria. É fato que a maioria aqui não está acostumada a ficar isolada, tampouco com as devidas restrições para transitar pelas ruas da cidade, além do desespero de uma possível contaminação. A pressão e as várias informações sobre a necessidade de isolamento geram ansiedade, que por si só traz consequências negativas para nós, estudantes. Talvez o que fique como aprendizado desse período incomum seja a responsabilidade como coletivo, pois cada um de nós é parte de um grupo, seja nossa família, amigos, etc., devemos zelar para que nossas ações não prejudiquem aqueles ao nosso lado e que não nos façam estar arrependidos no futuro”.

Notícias da CEU 145
Quando perguntadas sobre como tem sido a experiência de viver na Casa do Estudante em tempos de pandemia, as estudantes que integram a direção da CEU 145, Lucieli Francini Barni, Vitoria Souza, Vanessa Batista e Eliane Cristina Dias respondem juntas. "Acreditamos que o mais difícil é conciliar uma rotina de estudos estando em um ambiente bastante precarizado. Passamos as semanas correndo atrás de manutenções na infraestrutura da casa. Conciliar isso com grupos de estudos por videoconferência, pesquisa e leituras do curso, numa casa em que não temos internet nem um ambiente bom como a biblioteca da FURG tem sido bastante complicado. A mudança foi geral, estamos recebendo marmitas no almoço e na janta, temos restrição de visitas e só saímos para tomar café (como nossa casa é externa ao campus, alguns nem tomam café), e ir ao mercado. Além disso o estresse e a ansiedade só agravam ainda mais esse processo de isolamento social".

Há mudança brusca na rotina e dificuldades de reclusão, e também há crescimento. "Além da valorização das pequenas coisas das nossas rotinas, começamos a nos organizar mais enquanto Casa do Estudante, pessoas que antes não se envolviam ou se empenhavam com a organização dos espaços coletivos começaram a se engajar mais ou pelo menos a serem afetadas diretamente com os acontecimentos", avaliam.

Na Casa Interna 2
Com bastantes residentes, na Casa Interna 2 muitas rotinas coexistem. “Alguns já trocaram o dia pela noite, tem quem, apesar da recomendação da reitoria, segue tendo aulas e trabalhos para entregar, mas [em geral] o pessoal fica dentro dos quartos, a maioria já está entediada, saindo basicamente para ir ao RU pegar café ou ir ao mercado. A rotina na própria quarentena mudou, no início o pessoal se reunia mais para jogar, assistir filme e agora estão [todos] mais reclusos”, percebe Pâmela Soares, estudante de Ciências Contábeis.

Entre as maiores dificuldades do período estão “o estresse da tensão e do ócio e os problemas psicológicos. Aqui em casa o pessoal me procura bastante para conversar/desabafar e muitos estão sofrendo por estarem longe da família. Muitos preferiram não voltar para casa para não ser mais um custo para as famílias”, conta. Pâmela acredita que há aprendizado possível nessa pandemia. “As pessoas se tornaram um pouco mais solícitas. Quem consegue manter um [estado] psicológico mais estável está conseguindo se autoconhecer e isso pode ser muito benéfico para os estresses da vida acadêmica, mas nem tudo são flores, alguns estão aprendendo na pele que seus institutos estão pouco se importando com os alunos e seguem dando aula e passando trabalho. Aqui em casa mesmo tem gente que não tem notebook e precisa ficar pedindo emprestado para assistir as aulas online, esperando o colega usar para fazer um trabalho”.

Na CEU do Campus Santa Vitória do Palmar
A Casa do Estudante em Santa Vitória do Palmar abriga hoje dez estudantes. Amanda Vale Silva, estudante de Relações Internacionais, a vida na casa mudou bastante. “Parte disso é resultado da evasão da maioria dos alunos. Além disso, acredito que por não termos mais a rotina de estudos em sala de aula estamos dormindo mais tarde. Também a distribuição da limpeza em áreas comuns mudou e há uma maior socialização entre os moradores”, considera.

A instabilidade da internet tem sido um problema. “Diversas vezes a internet caiu por três dias seguidos. Nossa casa é afastada do centro, onde há mercados, farmácias, entre outros. Então, a sensação de isolamento se intensifica nesse momento”, conta. “Essa fase apenas reforçou meu entendimento que existe tempo para todas as coisas. Que a esperança se renova em toda manhã (mesmo que não seja um dia tão bom) e que independente do momento nós possamos superar juntos”.

Sopa cultural e solidariedade na CEU de São Lourenço do Sul
Os moradores da CEU de São Lourenço do Sul são provenientes de lugares distantes do país. A dificuldade de chegar ao campus impossibilitou que todos voltassem aos seus lares. “Subtraindo os que puderam partir, nosso grupo ficou em nove moradores”, conta Ronaldo Augusto da Silva, estudante de Agroecologia, que relata o que tem vivido por lá nos últimos tempos.

Pense em uma sopa cultural: paraibano, mineiro, paulistano, goiano, brasiliense, gaúcho… Uma faixa etária que vai dos 18 aos 55 anos (nesta, eu). Em suma, é muito enriquecedor pela troca de experiências. Há naturalmente alguns entraves domésticos que são resolvidos através do diálogo, quando acalmados os ânimos e aparadas as arestas. Viver em uma casa de estudante é como se tivéssemos ido passar uma temporada com uns primos distantes. A rotina para a maioria ficou bastante monótona, em comparação com os períodos semestrais normais na universidade.

A parte mais difícil do isolamento social é exatamente a de nos deixar aquela sensação de que estamos privados de nossa liberdade de locomoção. A necessidade de mudar radicalmente hábitos que antes julgávamos corriqueiros, como o simples ato de ir ao supermercado ou padaria. Acho que em parte não surtei nesta crise porque sou em geral bastante proativo para uma boa porção de coisas, creio que seja minha veia para transformar, recuperar, consertar, fazer objetos.

Um pouco antes de entrarmos na quarentena, pensei em voltar a costurar ao ver um móvel de máquina de costura descartado na calçada por uma vizinha aqui da CEU. Recolhi para restaurá-lo oportunamente. Falei a um amigo que estava pensando em vender algo de valor meu para comprar uma máquina de costura. Na tarde do dia seguinte ele me disse que uma senhorinha, vizinha dele, havia lhe dado uma máquina e que ele estava disposto me doá-la. Aceitei e fiquei muito feliz. Acredite, no mesmo dia recebi uma mensagem no whatapp da professora Graziele perguntando se eu queria participar do projeto da FURG em parceria com a Escola de Corte e Costura Santo Molde na fabricação de máscaras de proteção contra a Covid-19. Claro que aceitei e fiquei ainda mais feliz.

A proposta do projeto é fantástica, pois a comunidade troca um quilo de alimento por máscara. Esse alimento recolhido é doado nas comunidades carentes do município de São Lourenço, junto com máscaras. Participar do projeto “Fazendo o bem sem ver a quem” é dignificante, saber que de alguma forma estou participando de uma grande corrente mundial de solidariedade. E saber que uma máscara que confecciono com carinho vai proteger uma vida me motiva a produzir o maior número possível delas.

Depois que tudo isso passar e forem contabilizadas nossas inenarráveis perdas de vidas humanas, fica-nos o aprendizado de que o nosso maior bem é a vida e tudo que a ameaça, fere ou aniquila não pode abalar nosso elã vital e nossa fé na humanidade. Que a solidariedade é nossa maior arma contra esse vírus ou qualquer outra mazela que assole o mundo.

 

Gallery

Moradores de Casas do Estudante Universitário da FURG têm rotina alterada pela pandemia de Covid-19

Foto: Divulgação