Entre as cenas acionadas por nossa imaginação quando o assunto são catástrofes ambientais, o derretimento das geleiras certamente é uma das mais impactantes. Está presente em filmes que apresentam um cenário apocalíptico, como Waterworld – O Segredo das Águas e O Dia Depois de Amanhã.
Para além da ficção, a preocupação é real. “As geleiras são sensores naturais do que está acontecendo com o clima do planeta”, explica Guilherme Tomaschewski Netto. Bacharel em Ciências da Computação, Netto é professor da área na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Mas em sua pesquisa de doutorado dedicou-se à glaciologia, ou, em outros termos, ao estudo das geleiras e do gelo. No Programa de Pós-graduação em Oceanologia da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), com orientação do professor Jorge Arigony-Neto, Guilherme desenvolveu um equipamento capaz de monitorar o derretimento das geleiras.
O professor orientador do estudo explica porque a pesquisa, que já foi premiada três vezes com o programa de bolsas Google Latin America Research Awards (Lara), é inovadora: “A forma glaciológica tradicional de medir o derretimento na superfície das geleiras é baseada na instalação de estacas em perfurações de profundidade maior que o derretimento estimado para o período de medição”, relata Arigony. Para isso usam-se materiais como estacas de bambu ou PVC, que ficam afixadas na geleira até a próxima medição.
“O problema desse método é que a gente consegue medir o derretimento da geleira entre uma visita e outra. Na Antártica, só uma vez por ano. Na Patagônia, mais perto, a gente consegue fazer duas vezes por ano. Dentro desse grande período de tempo, não se consegue saber quais são as condições meteorológicas que mais contribuíram para o derretimento das geleiras, para saber se foi no período de maior temperatura, ou sem nuvens, por exemplo, e essa foi a grande sacada do equipamento desenvolvimento pelo Guilherme”, contextualiza.
Solução simples para um problema complexo
As geleiras têm ciclos de acúmulo e perda de gelo. A equação pode ser positiva, quando ganham mais gelo do que perdem, ou negativa, quando perdem mais gelo do que ganham. Apenas saber o acúmulo de perda ou ganho de massa de geleira em um ano não permite compreender o que está influenciando no derretimento das geleiras, que é chamado pelos cientistas de ablação.
No Laboratório de Monitoramento da Criosfera da FURG (LaCrio), o grupo de pesquisa de Arigony centra seus esforços em preencher essa lacuna, de compreender a resposta das áreas cobertas de gelo - como geleiras, gelo marinho e gelo congelado - às mudanças climáticas. Para isso, atuam no desenvolvimento de métodos automáticos para o monitoramento de massas de gelo, e integram o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera (INCT da Criosfera).
Com a orientação de Arigony-Neto, os conhecimentos de Guilherme em computação foram aplicados ao desenvolvimento de um equipamento capaz de repaginar o método tradicional de medição e produzir dados acurados sobre as condições meteorológicas que influenciam no derretimento das geleiras.
Muito mais sofisticado que uma estaca de medição, o mecanismo funciona com uma haste longa de PVC, de 12 metros. Essa baliza é introduzida na geleira, assim como no método tradicional. Mas dentro dela, a cada 15 cm, há sensores de radiofrequência (os mesmos usados em portas de banco ou sistema de leitura de cartões de transporte coletivo). A grande inovação fica na superfície da geleira. Envolto à baliza, há um pequeno tripé. Nele está instalado um leitor movido a energia solar. Conforme a geleira derrete, o tripé desliza pela haste de PVC e vai lendo as informações dos sensores. O conjunto é a estação eletrônica de ablação, o grande invento da pesquisa.
Associada a ela, foi estruturada também uma estação meteorológica automática. Produzida com baixo custo, ela registra variações de temperatura, velocidade do vento, pressão atmosférica e umidade do ar. Assim, é possível cruzar estes dados com o derretimento da geleira.
Foi com estes dois equipamentos nas geleiras do sul da Patagônia, no Chile, que os pesquisadores puderam se certificar que o calor é realmente uma forte influência para o degelo. Precisamente, 8 centímetros por dia foi o acelerado ritmo de derretimento em janeiro de 2018. Guilherme observa que é necessário atentar para as características da geleira em estudo: trata-se de uma geleira temperada, em nível muito próximo ao do mar, que é muito sensível ao calor.
Alta tecnologia a baixo custo
“O equipamento é simples, barato e robusto. Por ser simples, não tem muito mecanismo. Nesses ambientes, quanto mais simples melhor”, esclarece Guilherme, sobre a invenção. Os principais critérios levados em conta para o desenvolvimento foram o baixo custo, a portabilidade, para poder ser transportado a áreas remotas em que é difícil o acesso, a autonomia na operação e a precisão nos dados.
Como a baliza que é inserida na geleira tem 12 metros de extensão, ela é dividida em segmentos, tanto para facilitar o transporte, quanto para que, à medida que a geleira baixe, a baliza possa ir se desarmando, para não sofrer pressão do vento. As balizas são feitas de PVC e o tripé de componentes de fibra de carbono de mastros de windsurf reciclados. Assim, são leves e baratas. O sistema funciona com um pequeno painel de luz solar, de 20x30cm. E como há dificuldade para transmissão remota dos dados, em função da indisponibilidade de redes, os dados ficam registrados em um cartão de memória.
Inovação para o bem comum
A tese de Guilherme, intitulada “Relação entre a ablação da geleira Schiaparelli e as variáveis meteorológicas locais no período 2013-2018” foi defendida no fim do mês de junho. Mas para o pesquisador, foi apenas o início da pesquisa. É que para avaliar o real impacto das mudanças climáticas são necessárias séries de longo prazo. O período monitorado na pesquisa de doutorado foi de 440 dias. O objetivo agora é seguir monitorando as mesmas geleiras por pelo menos uma década.
A estação de ablação, invento de Guilherme com a orientação de Arigony, não teve depósito de patente. É desenvolvida com código aberto para que seja replicada e que possa permitir o monitoramento de outras geleiras, em outras partes do globo. Por isso toda a especificação técnica, tanto da estação de ablação, quanto da estação meteorológica, estão disponíveis online, neste site. Além disso, em um paper publicado no periódico científico HardwareX, os pesquisadores descrevem detalhadamente ambas as estações.
No sul da Patagônia, os pesquisadores já trabalham em cooperação com universidades e instituições de pesquisa chilenas (Instituto Antartico Chileno, Fundación CEQUA e Universidad de Magallanes), espanholas(Universidad del País Vasco e Basque Centre for Climate Change), alemã (Humboldt-Universität zu Berlin) e australiana (Macquarie University).
A expectativa é que, somando esforços e diferentes visões, se possa avançar para compreender melhor o fenômeno e também evitar os impactos mais catastróficos que a ele estão associados.