Comunidade

Comunidades pesqueiras da Lagoa dos Patos lançam protocolo de consulta para defesa de seus territórios

Documento envolve mais de 530 pescadores artesanais e representa 73 comunidades, localizadas em 18 municípios do Rio Grande do Sul

Foi com o objetivo de lutar pelos seus territórios e pela continuidade de seus modos de vida que comunidades tradicionais pesqueiras da Lagoa dos Patos elaboraram um protocolo que orienta a consulta livre, prévia, informada e consentida prevista pela Convenção n° 169, de 1989, da Organização Internacional do Trabalho, e amparado pela Constituição Federal e Decreto nº 6.040, de 2017.

Fruto de um amplo processo de autorreconhecimento, debate e valorização, o documento representa 73 comunidades localizadas nas margens da Lagoa dos Patos, Lago Guaíba e Delta do Jacuí, que têm na Lagoa dos Patos seu território tradicional pesqueiro.

O Protocolo de Consulta foi construído por meio de 28 oficinas comunitárias realizadas entre 2023 e 2025, envolvendo 44 comunidades pesqueiras de 14 municípios do Rio Grande do Sul, totalizando mais de 530 pescadores artesanais. O documento foi aprovado durante o Encontro Regional de Pescadores e Pescadoras Artesanais da Lagoa dos Patos, realizado de 28 a 30 de maio de 2025.

Durante o evento, os pescadores entregaram uma cópia do documento ao vice-reitor da FURG Ednei Primel, solicitando que a Universidade adote o protocolo e o direito das comunidades tradicionais à consulta em projetos de pesquisa, extensão universitária e inovação que possam afetar seus territórios ou modos de vida.

A iniciativa é resultado do projeto de extensão da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), “ValorizAÇÃO das comunidades tradicionais pesqueiras da Lagoa dos Patos”, com a participação de mais de 37 pesquisadores em diferentes níveis de formação e de pescadores artesanais como parte da equipe técnica. 

O trabalho foi desenvolvido com base no diálogo intercultural e na articulação entre ensino, pesquisa e extensão, envolvendo a coordenação do Laboratório Interdisciplinar MARéSS (Mapeamento em Ambientes, Resistência, Sociedade e Solidariedade), vinculado ao Instituto de Oceanografia (IO) e das Ciências Econômicas, Administrativas e Contábeis (ICEAC), e o (R)EAT (Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão (R)Existências Ambientais e Territoriais), vinculado ao Instituto de Ciências Humanas e da Informação (ICHI).

Segundo Tatiana Walter, do IO/São Lourenço do Sul, o protocolo estabelece “como, quando e de que forma as comunidades tradicionais pesqueiras querem ser consultadas”.

A elaboração do documento contou com a organização do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP-Brasil), com apoio da Coordenação do Rio Grande do Sul, da FURG, através do financiamento do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA).

Com 12 seções, o documento é apresentado em linguagem acessível, com fotografias de pescadores artesanais da Lagoa dos Patos e mapas dos territórios pesqueiros, além de um termo de compromisso para pesquisadores responsáveis por projetos de pesquisa e extensão universitária que possam impactar os modos de vida das comunidades da Lagoa dos Patos.

A consulta no território pesqueiro

A consulta prévia se aplica a qualquer proposta que envolva o território tradicional, tanto nas águas quanto em terra. O documento apresenta uma série de itens informando o que essas comunidades tradicionais pesqueiras querem e como querem ser consultadas.

“Em uma das seções é destacada que a consulta deve ser conduzida pelas organizações de pesca, em diálogo com o poder público responsável, incluindo o órgão ambiental quando se tratar de empreendimentos econômicos, e custeada pelos agentes externos, interessados em propor alterações no território pesqueiro”, informou Tatiana.

O processo inclui sete etapas: 1) recebimento da proposta na íntegra e no encargo de representantes para organização do processo de consulta; 2) realização de reuniões explicativas iniciais com os agentes externos; 3) realização de reuniões de mobilização nas comunidades pesqueiras sobre a existência do projeto; 4) realização de reuniões informativas nas comunidades com os agentes externos; 5) realização de reuniões internas entre pescadores e pescadoras; 6) realização de reuniões de diálogo e decisão entre as comunidades e agentes externos; e 7) acompanhamento das decisões das comunidades após as consultas.

No caso de projetos de extensão e pesquisa, os procedimentos são simplificados, mas exigem a entrega de informações completas e precisas, em conformidade com os princípios da ética e da transparência.

Após a reunião de apresentação do projeto, as pessoas responsáveis devem assinar um termo de compromisso para sua realização, conforme o modelo anexado ao Protocolo de Consulta.

Nesta quarta-feira, 25, uma comissão de cerca de 30 pescadores entregou cópia do documento ao Ministério Público Federal (MPF), à Comissão Estadual de Direitos Humanos (CEDH), à Secretaria Estadual de Desenvolvimento Rural (SDR) e à Superintendência do MPA no Rio Grande do Sul, solicitando que as organizações respeitem o protocolo, o divulguem e exijam o cumprimento dos direitos dos povos e comunidades tradicionais.

A tradição da pesca artesanal na Lagoa dos Patos

As comunidades tradicionais pesqueiras vivem na Lagoa dos Patos há pelo menos 300 anos, provenientes de diversos territórios pesqueiros, como a Lagoa Mirim. A pesca artesanal é a principal atividade de subsistência e geração de renda, com diferentes tipos de pescarias, como as realizadas em sistema bate e volta ou acampadas.

Entre os peixes capturados estão cascudo, carpa, corvina, dourado, jundiá, lambari, linguado, peixe-rei, pescada, pescadinha, pintado, robalo, tainha, anchova e camarão. As comunidades também mantêm práticas culturais ligadas à pesca, como a construção de embarcações, a confecção de petrechos, a culinária, as festividades e a participação em campeonatos de futebol.

Atualmente, são mais de 73 comunidades pesqueiras reconhecidas em 18 municípios: Arambaré, Barra do Ribeiro, Capivari do Sul, Camaquã, Eldorado do Sul, Guaíba, São Jerônimo, Mostardas, Palmares do Sul, Pelotas, Porto Alegre, Rio Grande, São José do Norte, São Lourenço do Sul, Tapes, Tavares, Triunfo e Viamão. 

Segundo o MPA, em 2025, os municípios da região contam com pelo menos 4.627 homens e 2.451 mulheres que exercem profissionalmente a pesca.

Conflitos nos territórios pesqueiros

De acordo com os relatórios de conflitos socioambientais do Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), as comunidades tradicionais pesqueiras enfrentam perdas na qualidade de vida, criminalização de movimentos e pessoas, e violações de direitos. 

“Relatórios apontam que atividades econômicas e políticas públicas têm ameaçado a permanência das comunidades nos territórios pesqueiros. No Rio Grande do Sul essa realidade se expressa em diversas atividades econômicas e políticas públicas, inclusive pesquisas, que têm ameaçado ou prejudicado a continuidade das comunidades tradicionais pesqueiras. ”, compartilhou Tatiana.

As ameaças incluem a expansão de latifúndios, empreendimentos portuários, minerários, hidrelétricos e turísticos, além de monoculturas de soja, milho, arroz, fumo, pinus e eucalipto, intensificação da urbanização, industrialização e da contaminação química desde meados do século 20.

Essas ofensivas contra as comunidades pesqueiras representam a violência de agentes externos, inclusive de cientistas, além da ausência e omissão do Estado, que não tem garantido o direito das comunidades de verem suas culturas e modos de vida respeitados. 

Diante desse cenário, as comunidades vêm se organizando coletivamente e construindo estratégias de luta para manter os territórios pesqueiros livres de ameaças e preservar suas tradições.

O Protocolo de Consulta das Comunidades Tradicionais Pesqueiras da Lagoa dos Patos/RS está disponível para acesso público. Para saber mais, clique aqui.

 

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