A primeira vez que Darci Emiliano, integrante da aldeia kaingang Cacique Doble, na zona norte gaúcha, pisou na FURG foi em maio de 2013. Era o início do sonho de ter um diploma de pós-graduação universitária, com a busca pelo título de mestre. Sete anos depois, ele acaba de se tornar o primeiro indígena com o título de doutor na história da universidade.
Quando chegou a Rio Grande (RS), por meio do edital de seleção para o mestrado do Programa de Pós-graduação em Educação Ambiental, Emiliano enfrentou barreiras culturais e outras dificuldades, como a distância de casa e da família - e agora relata ao furg.br como enfrentou as adversidades até chegar ao doutorado em Educação Ambiental. Sua tese, “A Educação Ambiental no IFRS: Estratégias ecosóficas para construir os dispositivos de ingresso, permanência e êxito dos estudantes indígenas”, articula ecologia e filosofia e foi defendida no dia 17 de março.
Como foi a sua formação escolar e o início da carreira acadêmica?
Estudei as séries iniciais em Cacique Doble (RS), nas escolas federais, como chamávamos nos anos 1970. A 6ª série eu cursei em uma capela próxima à reserva; caminhava diariamente 7km até a cidade, mais 7km na volta, muitas vezes sem ter o que comer. Sempre tive essa ligação com a agricultura, e depois me tornaria especialista em Solos e Meio Ambiente pela Universidade Federal de Lavras (UFLA). Hoje sou técnico administrativo em educação no IFRS - Campus Sertão. Mas fui para a FURG em 2013, com a intenção de cursar o mestrado em Educação Ambiental. O doutorado foi consequência.
O que representa para o sr. a conclusão de um doutorado?
É um sonho realizado e também um desafio e incentivo para que outros estudantes indígenas possam buscar os seus objetivos pessoais. Espero que essa titulação ajude a facilitar as condições de levar mais indígenas para o ensino superior.
Como se deu a escolha do tema de conclusão do curso?
Hoje a FURG conta com cerca de 50 universitários indígenas, e há 32 estudantes indígenas no IFRS - Campus Sertão. Mesmo com todos os subsídios garantidos pelas instituições, muitos deles não têm a segurança necessária para concluir os estudos. O índice de evasão de acadêmicos indígenas ainda é muito alto e é preciso trabalhar para mudar isso. Meus estudos têm esse objetivo.
Que tipo de dificuldades o sr. encontrou durante a vida acadêmica? Os hábitos e costumes são muito diferentes entre as comunidades?
A vida acadêmica é difícil para todo mundo. Mas sendo indígena, essas dificuldades são multiplicadas. O conhecimento que trazes da tua cultura nem sempre é levado em conta, e muitas vezes fui mal compreendido em sala de aula. Mas ao mesmo tempo tive várias oportunidades de crescimento dentro da FURG, onde pude falar pelo meu povo. É grande o carinho entre os indígenas dentro do ambiente universitário, no qual passamos a nos chamar de "parentes" uns aos outros. Então afora o aspecto cultural, os problemas financeiros estão acima de tudo.
Qual a importância de programas de políticas afirmativas para o acesso a indígenas na universidade, em cursos de graduação e pós-graduação?
Governos anteriores recentes, de maneira geral, tiveram o entendimento de colocar em prática essas ações afirmativas para proporcionar que negros, indígenas e quilombolas também tivessem a oportunidade de estudar. O nosso processo de luta inclui tantas outras questões - saúde, segurança, demarcação de terras - mas agora voltamos a pecar nisso. Corremos riscos a todo momento.
A FURG tem tido um papel exemplar nas ações políticas. Ela não proporciona apenas o ingresso na universidade, mas também coloca em prática a sua inclusão estando lá, fornecendo todo o apoio necessário para que o aluno mantenha seus estudos. E o mais importante, ela dá autonomia de fala aos povos indígenas e outras comunidades de menor visibilidade. É a oportunidade de troca de conhecimento, de ouvir coletivos tradicionais como indígenas, quilombolas, pescadores, seringueiros...
Como o sr. vê a expressão da cultura indígena no Brasil de hoje? De que forma o cidadão médio brasileiro pode contribuir para preservar a identidade dos povos indígenas?
Somos conhecidos historicamente por representar focos de resistência, desde a época do "descobrimento" do Brasil. Nesses 520 anos ocorreu o processo de genocídio dos povos, que foram sendo praticamente aniquilados em diferentes épocas, passando pelo militarismo até o período da democracia. Ainda hoje lutamos contra isso, e pela retomada de nossas terras. Queremos uma forma de vida diferente da do homem branco, do capital, do latifundiário. A nossa sobrevivência, nossa espiritualidade e religiosidade estão lá, na aldeia. Agora neste período de quarentena estamos valorizando isso mais do que nunca. Queremos que seja garantido a esses povos serem diferentes, em um sentido bom. Se hoje o indígena preserva a natureza, ele não a preserva para si, mas para a sociedade como um todo. A questão do desmatamento, da água envenenada, todo o sistema capitalista também sente isso, até mais do que nós. Houve uma época em que não existia dinheiro, e vivíamos bem. Defendo o processo de revitalização dos saberes e práticas indígenas. É preciso reconhecer que existem povos diferentes, e que querem seguir vivendo de uma forma diferente. E que os indígenas também estão fazendo por eles, homens brancos.
Quais são as principais demandas nas aldeias próximas ao sr.?
Costumo transitar pelas aldeias do norte do Estado, onde busco divulgar processos seletivos a que esses povos têm direito. Tenho meus pais, filhos e netos morando em aldeia. A educação de qualidade e gratuita deve ser prestigiada por todos, e a ideia é continuar batalhando pelo ingresso, permanência e êxito dos estudantes indígenas em institutos federais e universidades.
A questão da saúde por lá está OK, mas requer atenção especial com o saneamento básico. Projetos e financiamentos para agricultura, por exemplo, inexistem. O povo indígena está carente na área de projetos aviários, suinocultura, fruticultura. Os povos guaranis costumam produzir miudezas ao redor de casa, mas isso foi sendo abandonado gradativamente pelos kaingang, pois cada vez mais estamos inseridos na dieta do homem branco. Quero ajudar a retomar esses processos de parcerias e convênios para auxiliar, ao menos, na questão da segurança alimentar.
Qual a situação das comunidades indígenas diante do coronavírus?
Somos povos de coletividade, então para nós é difícil aceitar viver em quarentena. Mas o coronavírus não é de todo mau, pois veio para reforçar a importância de sentar e conversar com nossos anciões. É quando sentamos ao redor do fogo de chão, preparando chás, ervas e xaropes, ouvindo curandeiros e kujás, que reencontramos nossa ancestralidade. Isso para nós é muito importante, especialmente nesses tempos difíceis.
De que maneira deve ser lembrado o dia 19 de abril?
Hoje em dia só temos essa data, infelizmente. É a época em que as escolas pensam na gente. É quando nós, indígenas, tentamos entrar nos centros de educação para reivindicar nossos direitos e tentar fazê-los reconhecer nossas diferenças. É uma data de luta. Mas Dia do Índio deveria ser todos os dias do ano.
Quais são os seus projetos a partir de agora?
Pretendo continuar dialogando com as lideranças para trazer mais e mais estudantes indígenas à academia, e que eles retornem às suas aldeias para auxiliarem seu povo. O povo está abandonado. Muitos de nós sobrevivem quase que exclusivamente da venda de artesanato. Com a educação, é possível melhorar esse quadro nos próximos anos.
Como mensagem final, deixo esta frase do indígena kaingang Augusto Ôpé da Silva: "Devemos ter um pé na universidade e outro na cultura".