DIA DOS POVOS INDÍGENAS

"O tempo do indígena é circular, e a literatura indígena acompanha esse tempo"

Autora amazonense Márcia Kambeba comenta sua obra, relata experiências como mãe atípica e fala sobre a participação no seriado "Cidade Invisível"

Foto: Acervo Pessoal

Márcia Wayna Kambeba, da etnia Omaguá/Kambeba, nasceu em uma aldeia ticuna na comunidade de Belém do Solimões, atualmente no município de Tabatinga (AM). Poeta e geógrafa, é mestre pela Universidade Federal do Amazonas, com uma pesquisa que relaciona território e identidade étnica.

Em sua produção poética, Márcia se aproxima da literatura de cordel para refletir sobre questões como a violência contra os povos indígenas e os conflitos trazidos pela vida na cidade.

Mãe de Carlos Augusto, diagnosticado com o transtorno do espectro autista, lançou recentemente um livro infantil ("Curumim Wirá e os Encantados", de 2023) onde narra as dificuldades enfrentadas por um menino indígena com restrições cognitivas.

Nesta entrevista exclusiva para o furg.br, a escritora fala de sua trajetória e aponta outras formas de narrar a história indígena, a partir de uma temporalidade atravessada por sua subjetividade artística e pela história e memória cultural dos povos originários - pois, como escreveu em sua poesia "União dos Povos", que marca o Abril Indígena da FURG este ano: "Nós, povos indígenas habitantes do solo sagrado, mesmo sem nossa aldeia somos herdeiros de um passado".

Como a sra. analisa a importância da literatura indígena por meio da poesia, em especial como instrumento de resistência e de preservação do pensamento dos povos originários?

A literatura indígena é uma ferramenta muito importante na luta em prol da nossa resistência. Ela se soma, logicamente, a tantas outras lutas de tantos indígenas, e fortalece o movimento. A literatura que nós produzimos é uma literatura que nasce do nosso território, a partir das vivências, das territorialidades que nós impregnamos no lugar onde a gente vive, chamado aldeia. E ali as pessoas podem também ter acesso a informações importantíssimas, relacionadas à cultura, memória, identidade, às narrativas orais fundamentais para a construção e continuidade dos saberes repassados por milhares e milhares de anos por nossos ancestrais.

A literatura que nós produzimos tem sagrado, porque ela vai falar também das relações que se estabelecem entre o homem e a ancestralidade, o sagrado e a ciência que a gente carrega relacionados à cura através das ervas medicinais, das rezas, dos benzimentos, dos banhos serenados... é muito saber produzido pelos povos originários que estão contidos nesses livros.

Esta semana abriu, em Belém, a mostra Araetá, de literatura indígena. São mais de 380 títulos catalogados, escritos por 110 indígenas em todo o Brasil. Todo dia aparecem novos escritores indígenas, novas literaturas são produzidas, e isso é importante porque é circular. O tempo do indígena é circular e a literatura indígena também acompanha esse tempo circular. Para mim é fundamental que apareçam cada vez mais novos parentes e parentas dentro do movimento da literatura indígena, que fortalece, que cresce. Não somos egoístas a ponto de dizer que é (um movimento) fechado. É aberto mesmo, porque o parente precisa produzir; ele precisa escrever a sua memória, remexer na sua memória e dar continuidade a essa história.

Em que momento da sua vida surgiu o interesse pelo ativismo na causa indígena?

A literatura aparece na minha vida muito pequena, ainda. Minha avó fazia poesias e eu recitava na aldeia em que nasci, para o turista. Aos 14 anos eu começo a rabiscar minhas primeiras poesias. Somente na fase adulta, no Mestrado, que eu publiquei o meu primeiro livro, chamado "Ay Kakyri Tama" (2018), que significa "Moro na Cidade". A partir desse livro, eu trouxe reflexões voltadas também - porque sou geógrafa - para questões geográficas, com as territorialidades sempre presentes nas minhas poesias.

Comecei a fazer da poesia essa ferramenta de divulgação da luta, da resistência, da decolonialidade, a falar dos poemas-manifestos relacionados à natureza, à causa indígena.

São nove livros publicados até agora, com mais quatro saindo ainda em 2024 e outro para o próximo ano.

Como surgiu o convite para participar da consultoria em "Cidade Invisível", da Netflix? Gostou do resultado final da série?

O convite para participar como consultora do roteiro nessa segunda temporada veio do (escritor e roteirista) Daniel Munduruku, ele que fez a indicação. Ele me falou primeiro, a partir daí a equipe do seriado entrou em contato comigo, e então tive a oportunidade de falar com o Carlos Saldanha e o time de roteiristas em uma live. Eu pegava muito no pé deles (risos) em relação à personagem Matinta (Perera), de uma maneira especial, porque eu escrevo sobre a Matinta e tenho carinho por esse ente da floresta. Ela não é uma fábula, mito ou folclore; eu ouvi o assovio da Matinta na aldeia em que morava. Nunca a vi, mas sei do seu assovio, minha avó dizia que era a Matinta. Então tenho a narrativa de quem viu Matinta, e escrevo e pesquiso sobre ela. E aí peguei bem firme nessa parte da personagem, o Carlos aprovou as ideias que coloquei e foi muito legal.

Gostei do resultado final, foi uma experiência maravilhosa. Somos três indígenas consultores nessa temporada, eu, Daniel e Telma Taurepang. Éramos muito respeitados e boa parte do que sugerimos eu vi na tela, então fiquei muito feliz.

Em mais de 120 anos desde a sua fundação, a Academia Brasileira de Letras (ABL) finalmente empossou o primeiro indígena eleito a ocupar uma cadeira na ABL, o poeta e escritor Ailton Krenak. Como a sra. recebeu essa notícia, e o que ela representa na história dos povos originários?

Essa presença do Ailton Krenak na ABL é um marco para nós, não só na literatura indígena mas também no movimento. Ailton é uma expressividade. Ele esteve na Assembleia Constituinte junto a tantos outros indígenas resistentes nessa luta. Não vamos negligenciar a presença dos outros parentes, então junto com Ailton estiveram Marcos Terena, Álvaro Tucano, Eliane Potiguara... as mulheres também estiveram junto com os homens, precisamos também voltar o olhar para a presença feminina na luta dessa resistência que se tem hoje e de todas essas conquistas que já alcançamos.

É importante dizer ainda que ele está ali não apenas como uma representatividade, mas também como uma voz, que ecoa, fortalece. Eu penso que é para isso a presença de quem está na ABL: para pensar nas possibilidades de a literatura brasileira se expandir. Nós precisamos ler mais autores brasileiros. Aqui na Amazônia nós precisamos ler mais escritores amazônidas. Isso é importante, ter leitura. Ler é um ato revolucionário. E a gente precisa fortalecer o nosso ser pessoa também com leitura. Porque é a partir daí que você se torna um ser crítico, né? Eu sempre gostei de ler. Desde que saí da aldeia aprendi a ler, e a leitura me acompanha até hoje.

Sou pesquisadora, sou doutoranda em Estudos Linguísticos, pesquiso o meu próprio povo desde o Mestrado e agora, no Doutorado, estou pesquisando as narrativas orais que interligam territórios kambeba na Pan-Amazônia contemporânea Brasil-Peru. Isso vai ser muito importante para o meu povo, porque desde muitos séculos atrás a gente vem sendo violentado. E os omágua kambeba do Peru e do Brasil há muito tempo não se interligavam. Em 2021, eu entro no Doutorado e crio essa ponte. Está sendo feito um trabalho muito bonito, e a missão agora é fortalecer os omágua kambeba do Peru criando uma casa de saberes. Estamos buscando parcerias com ONGs que queiram contribuir na construção dessa casa, onde eles vão poder realizar as suas rezas, os seus cantos e rituais, suas palestras e formações, é importante ter isso na aldeia.

Como é ser uma mãe atípica no contexto indígena? Poderia compartilhar um pouco de sua trajetória e adversidades?

Eu sou mãe do Carlinhos, ele é autista nível 2 com suporte. Ser mãe desse menino, desse adolescente que agora tem 15 anos, é um aprendizado. Meu filho me ensina todo dia o que é ser um ser humano. O ser humano é sensível ao outro, ele perdoa. A ignorância das pessoas produz a violência, e meu filho passou por uma violência muito difícil.

Ele tem também insuficiência cognitiva, então ele não lê; escreve, mas não lê. Um professor disse que ele teria que voltar para o 1º ano do Ensino Fundamental - ele estava no 6º na época - porque ele estava "atrapalhando a turma". Meu filho chorou muito, se sentiu ofendido, entendeu que aquilo era um preconceito contra ele. Eu sofri mais ainda. Mas ele me falou uma coisa muito bonita: "mamãe, a gente tem que perdoar a ignorância dele. Eu tenho direitos e eu sei dos meus direitos". Ele pediu para não sair da escola. Ele continua lá e o professor foi trocado.

E assim como o Carlinhos, quantos outros meninos e meninas com autismo passam por situações parecidas porque a escola não está preparada para esse público. Então é luta constante, é luta diária e gente como mãe vivencia isso na pele dia após dia. A gente sofre também. Eu sou autônoma: dou palestra, vendo livros, faço sarau, e quando o contratante me contrata eu tenho trabalho; se não contrata, não tenho. Não posso aposentar meu filho porque eu sou MEI. Ou seja, se a mãe ou o pai do autista vêm a falecer, como é que fica esse indivíduo? O benefício (de Prestação Continuada) é para o autista, não é para a mãe. Se eu vier a faltar na vida dele, quem vai dar o suporte que ele precisa - fono, terapeuta ocupacinal, psiquiatra? Para mim, correr atrás de tudo isso é caro, é difícil. Acho que têm que ser revistos os direitos, esse tipo de situação tem que ser reavaliada.

A sra. tem projetos de livros em andamento? Há temas específicos que gostaria de abordar em suas próximas obras?

Este ano lancei "Cocar", "Matita Pajé", "O Curumim e o Rio" e outras duas obras. Eu escrevo muito, escrevo todo dia, então já perdi o controle da minha escrita, praticamente, porque eu escrevo e vou escrevendo (risos). As editoras vão surgindo, pedindo material e eu vou produzindo. São quatro editoras com lançamentos meus programados para este ano, e ano que vem vou lançar livro também. O projeto é escrever sempre, não posso parar.

Agora estou escrevendo também na linha infanto-juvenil, porque acredito piamente que as crianças são o nosso amanhã e elas precisam ser bem trabalhadas hoje para serem bons ancestrais, como diz o nosso parente Anápuàka M. Tupinambá. Ser um bom ancestral hoje é fazer o melhor que se pode relacionado ao bem viver.