No Mês Farroupilha, o nome mais popular do tradicionalismo gaúcho chega ao sul do Estado como a principal atração da programação festiva dos 70 anos do Museu Oceanográfico “Prof. Eliézer de Carvalho Rios”. Renato Borghetti e sua gaita ponto sobem ao palco que será montado no pátio do museu no próximo sábado, 9, a partir das 15h.
Nesta entrevista exclusiva concedida à reportagem da Secretaria de Comunicação (Secom) da FURG, o artista de 60 anos rememora a carreira de mais de quatro décadas, ressalta sua predileção por mídias analógicas e fala de projetos pessoais como a Fábrica de Gaitas, um projeto de resgate cultural que promove o ensino do acordeon para centenas de jovens.
O show de Renato Borghetti tem apoio da Fundação Cidade do Rio Grande, Sagres RG - Agenciamento Marítimo, Torquato Pontes Pescados e Marinha do Brasil, com o patrocínio da CMPC. A entrada é gratuita.
Aproveitando sua participação nas festividades de aniversário do Museu Oceanográfico, como é a sua relação pessoal com o mar e as águas?
Bueno, para mim é um prazer poder participar das comemorações do aniversário do museu. Eu vejo na água uma energia muito diferente, muito positiva, muito forte. Desde piá, tenho relação com o mar por causa da família, indo para o litoral em férias e tal. Mas desde que fui para a Barra do Ribeiro, na região ali desde o Guaíba até a Lagoa dos Patos, a água passou a ter tudo a ver com o trabalho que eu faço hoje em dia.
Tanto que quando fizemos o último disco, Gaita na Fábrica (2016), fomos percebendo que, sem querer, o elemento que estava presente em todas as composições era a água. Então todas as músicas têm a ver com o tema: "Festa dos Rios", "Alfonsina Y El Mar", "Outras Águas", "Araçá", que é o arroio que tem ali na região. Isso foi acontecendo naturalmente, e acho que a força da água é impressionante.
No mês passado, completaram-se 35 anos da sua participação no Free Jazz Festival, em 1988, no Rio de Janeiro. Qual a lembrança dessa época, em que o seu trabalho ajudava a levar a cultura gaúcha a um público mais amplo?
O convite à época para tocar no festival foi, para mim, um divisor de águas. Eu estava gravando o meu quarto disco, Esse Tal de Borghettinho (1988); os dois primeiros (Gaita Ponto, de 1984, e Renato Borghetti, de 1985) eram bem mais simples, com composições mais tradicionais. No terceiro álbum (também batizado de Renato Borghetti, de 1987), eu já tive mais composições próprias, buscando coisas mais modernas e contemporâneas, sem perder as origens e o regionalismo.
Então quando gravei o quarto disco, veio o convite para o Free Jazz, que estava super evidente à época. Isso foi para mim quase que um aval, mostrando que eu estava no caminho certo com esse meu equilíbrio entre o regionalismo, que eu não quero perder, e a modernidade. E sigo tentando achar esse meio-termo de não "exagerar na dose" e, ao mesmo tempo, não perder o ponto de partida que são os ritmos e a música regional gaúcha.
Como está A Fábrica de Gaiteiros e a participação dos jovens? O que esse projeto representa em sua vida?
O projeto está completando agora 12 anos, e está dando super certo. Temos 22 escolas hoje em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, e começamos também no Uruguai, "devagarzito". Atualmente, temos quase 600 alunos em sala de aula aprendendo a gaita de oito baixos.
Quando eu comecei a tocar, existiam apenas três fábricas de acordeon no Brasil, mas chegamos a ter quase 40 fábricas. Num determinado momento elas foram falindo, e em seguida que comecei a carreira todas elas foram sendo desativadas. Isso me acendeu um sinal de alerta, pois pensei que a médio e longo prazo isso iria refletir na falta de bons instrumentos e também de professores, de referências. O instrumento até existe, porque a gaita é europeia e pode vir por exportação, mas é um instrumento muito caro, de difícil de acesso para boa parte da população.
Então a ideia do projeto Fábrica de Gaiteiros é exatamente recuperar a fabricação; hoje, fabricamos 100% dos instrumentos, não terceirizamos nada, só que, diferente de uma fábrica "normal", quando o instrumento fica pronto a gente não vende. Toda a produção vai para o ensino gratuito de crianças e jovens de 7 a 15 anos, e eles podem, além daquele momento da aula, levar o instrumento para estudar em casa, devolvendo mais tarde para que outros colegas possam usar. A ideia é que quando forem comprar - porque hoje já existe uma fábrica e, claro, existem instrumentos antigos, recuperados - já saberão como tocar.
Quando se fala no Exterior em música brasileira, logo se fala em samba. Como era a recepção à sua arte nas primeiras turnês pela Europa e nos EUA?
Fora do Brasil eu comecei a tocar na Argentina e Uruguai, que para nós aqui é mais fácil, e também em alguns lugares da Europa. Mas acho que realmente a coisa ficou mais séria e regular a partir do ano 2000; nesse ano, fomos tocar em um evento em Viena, na Áustria, e conhecemos por lá a nossa produtora, que é austríaca e está conosco até hoje. A partir daí começamos a fazer turnês regulares por toda a Europa e hoje a coisa está mais consolidada. Fazemos todo ano pelo menos uma turnê europeia; já tocamos praticamente em todos os países, gravamos discos por lá e tudo. Shows nos EUA e Canadá já são mais esporádicos.
Sempre tem aquela coisa de, chegando música brasileira, a primeira coisa que o pessoal associa é o samba, o carnaval. Tenho o cuidado de não desdenhar, pelo contrário, digo que o samba é maravilhoso, e ele é realmente um ritmo que tem a assinatura do brasileiro, sendo forte em todos os lugares do país. Mas o Brasil é muito grande e diverso, e tem suas culturas regionais. Eu explico que venho do sul, em fronteira com os países do Plata, onde faz frio, neva e se produz vinho; é um Brasil que eles não conhecem. Não vejo isso como um problema e até acho que isso desperta a curiosidade das pessoas. Sempre que tocamos lá, pelo fato de tocar música instrumental a gente não esbarra no idioma e ela acaba se tornando algo mais universal.
A música nativista ainda tem fôlego para buscar maior visibilidade na mídia? Você costuma acompanhar os novos artistas da música nativista? Quais nomes merecem destaque?
O primeiro palco grande em que eu pisei foi a 9ª Califórnia da Canção Nativa, em 1979. A partir dali, participei de todos os festivais que havia naquele momento. Acho o palco de festival muito legal, no sentido de que o músico que está começando não tem o principal, que é a popularidade. Ainda existem as dificuldades de estrutura, luz, som etc. Quando tu chegas num festival, está ali um baita palco, com bom som e boa iluminação, e o elemento principal que é o público. Uma boa performance num festival acaba te projetando, tanto que existem muitos músicos que começaram a sua carreira em festivais.
Depois eles (os festivais) deram uma diminuída, e eu credito isso, infelizmente, à política, porque normalmente eles têm ligação com as prefeituras e estas têm o péssimo hábito, e não só com a cultura, de não dar continuidade a projetos de gestões opositoras. Muitos deles pararam por conta disso, e particularmente acho isso muito pequeno.
Da minha geração, muitos se destacaram - Elton Saldanha, João de Almeida Neto, Daniel Torres, Luiz Carlos Borges, que foi um mestre que nós tivemos. Depois disso, já pegando os festivais não tão em evidência, vieram Pirisca Grecco, Cristiano Quevedo, Shana Müller, Érlon Péricles, Ângelo Franco. Todos estes tiveram de achar outra forma de divulgar o seu trabalho, pois só os festivais já não davam suporte.
Agora tem uma nova geração que está começando, e uma coisa que vejo nos novos são principalmente os instrumentistas, que melhoraram muito. Tenho alguma restrição ainda na parte de composição ou de interpretação, mas na parte instrumental - isso vale para gaita, violão, percussão - acho que demos um upgrade considerável, tanto em solistas quanto no acompanhamento dos músicos. Houve um salto muito grande de qualidade.
Como você consome música hoje em dia, com tantas opções de plataformas digitais?
Bueno, eu sou totalmente analógico. Não sou muito "manso" nessa coisa de plataforma, ferramentas, tecnologia, mas é claro que a gente tem que se adequar. Os meus discos estão todos no Spotify; obviamente não sou eu que boto lá (risos).
Mas acho muito legal ter essa possibilidade porque, quando comecei, para escutar música gaúcha eu acordava às 5h da manhã e fazia um chimarrão e lá ficava até as 7h30, 8h, quando começava a programação normal das rádios. Hoje em dia não precisa mais, né? Nesse sentido, com a Internet melhorou muito, porque as pessoas não consumiam outros tipos de música - seja regional, seja instrumental, seja clássica - por desinformação. Hoje é só querer conhecer, que está muito fácil. Este é o lado positivo das novas ferramentas.
Como será o formato do seu show em Rio Grande, e o que o público pode esperar?
Vou chegar com um trio, formado com Neuro Júnior no violão de sete cordas, e o meu filho Pedro Borghetti no bombo leguero. A gente tem tocado direto juntos e isso pra mim também é muito legal. Essa gurizada entra também na nova geração que comentei antes, que está voando, experimentando novas técnicas musicais e trocas com outros estilos. Acaba que eu aprendo muito também com eles. Tenho composições com o Pedro, que estamos organizando para apresentar ao público, e o Neuro é um violonista de exceção, que toca muito.
Esse trabalho de trio tem me dado muita alegria - e muito gás também, porque eu tenho que começar a correr atrás dessa gurizada, né? Sou um pouco mais "usado" que eles e tenho que "me puxar" (risos).