ALDEIAS INDÍGENAS DE RIO GRANDE

Instalada no Horto do Cassino, Goj Tahn é a mais recente aldeia da região

Em meio à pandemia, artesãos customizam máscaras com grafismos, desenhos e palavras da cultura kaingang

Foto: Letícia Ponso

Os povos originários do Brasil são diversos, plurais e reivindicam o reconhecimento de suas identidades. No Abril Indígena, o portal da FURG abre espaço para uma série de reportagens sobre as três aldeias indígenas da cidade do Rio Grande (RS).

Confira abaixo o terceiro e último artigo da série, que apresenta a aldeia kaingang Goj Tahn, atualmente instalada no Horto do Cassino. Com a pandemia da Covid-19, os artesãos da aldeia passaram a customizar, junto ao artesanato tradicional, máscaras com grafismos, desenhos e palavras da sua cultura e língua.

Série Aldeias Indígenas de Rio Grande - Goj Tahn (Mar Azul)

Terceira aldeia indígena a se estabelecer em Rio Grande, a Aldeia Goj Tahn está atualmente instalada no Horto do Cassino. Pertence à etnia kaingang.

Indígenas do povo kaingang residentes no Horto Municipal do Cassino, os moradores da aldeia Goj Tahn (Mar Azul) chegaram na cidade do Rio Grande/RS em março de 2018, vindos da terra indígena de Guarita do município de Redentora/RS, em busca de valorização para sua cultura. Segundo afirmou o cacique Cláudio Ka Peni Leopoldino: "Acreditamos que os espíritos de nossos ancestrais nos mandaram para cá, mesmo sem conhecermos ninguém do Rio Grande, para formar uma aldeia. Hoje temos seis famílias, temos cacique, capitão, ou seja, uma estrutura definida. Fixamos a aldeia aqui, com a intenção de resgatar nossa cultura e mantê-la, colocando as crianças em contato com a língua kaingang."

Os kaingang são um dos povos indígenas mais numerosos do Brasil. Hoje, ocupam pouco mais de trinta áreas reduzidas, distribuídas sobre seu antigo território, nos Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, com uma população estimada em torno de 50 mil pessoas. Pertencentes à família linguística Jê, integram, juntamente aos Xokleng, o ramo dos Jê Meridionais.

Sua cultura desenvolveu-se à sombra das araucárias, árvore símbolo da mata de pinhais da Região Sul; por isso, o pinhão é um dos seus alimentos importantes, também usado para produzir uma de suas bebidas fermentadas. Também se alimentavam de caça e de pesca. A caça antigamente incluía os grandes e pequenos mamíferos das florestas subtropicais (anta, veado, caititu, queixada, quati) e a grande variedade de aves aí existentes (jacu, uru, papagaio, nambu, macuco), além dos tamanduás (mirim e bandeira), jaguatirica, lontra e ariranha, entre outros. Não parece ter sido costume dos kaingang a caça com armadilhas (comum, por exemplo, entre os guarani). Usavam mais frequentemente caçar aves e animais com seus arcos e flechas, com diferentes tipos de pontas feitas de madeira ou ossos de animais.

Da alimentação igualmente faziam parte o palmito, o mel das abelhas indígenas (também usado para produzir bebida fermentada), frutas silvestres, como a jabuticaba, o guamirim, pitanga, butiá, ariticum, araçá, etc., larvas de insetos, ou "corós", presentes na palmeira (os mais apreciados), na taquara, no pinheiro, na paineira e no jaracatiá. Entre as verduras, destacam-se o fuá (erva moura), o kumi (folha da mandioca brava), a cambuquira (folha da abóbora ou da moranga), pyrfé (folha do urtiga brava), etc. E finalmente, a erva-mate para o chimarrão (kógwuin), também utilizada para ritos de adivinhação.

No início do século 20, as terras indígenas dos kaingang foram demarcadas, porém desde muito antes já eram invadidas, expropriadas, griladas e cobiçadas pelo homem branco (fóg). Assim, a história dessa etnia é marcada por conflitos territoriais, e no Rio Grande do Sul o próprio estado tomou terras kaingang antes demarcadas principalmente entre os anos 1940 e 1960, provocando o êxodo de muitas famílias.

O aspecto que mais se destaca na organização social dos kaingang é a divisão nas metades exogâmicas, Kamé e Kairu, que se opõem e se complementam. Os Kamé estão relacionados ao Oeste e à pintura facial com motivos compridos (râ téi), e os Kairu relacionados ao Leste e à pintura facial com motivos redondos (râ ror). A filiação a uma metade é definida patrilateralmente: os filhos, de ambos os sexos, pertencem à metade de seu pai. Esse procedimento contínuo através das gerações estabelece o caráter patrilinear da sociedade kaingang.

Para compreender melhor o significado dos símbolos expressos graficamente nas cestarias kaingang, por exemplo, é importante considerar o contexto sociocultural a que pertencem. Na cestaria tradicional kaingang, todo o grafismo presente espelha a transição entre os lados separados dos mundos perceptíveis: kamé e kairu. Como tudo na dualidade kaingang, os desenhos círculo e reto (redondo e retilíneo) simbolizam esse relacionar-se que sempre pressupõe a presença do outro. Portanto, no grafismo kaingang, o aspecto formal do desenho corresponde ao "conteúdo de ordem cosmológica" que lhe é próprio. Na definição de parâmetros para a produção de suas representações iconográficas, a noção/percepção fundamental é a da dualidade complementar.

Um artefato como um cesto pode ter a estética muito valorizada ao olhar não-indígena (puramente visual), mas sem muitas vezes a valorização e a compreensão imediata do sentido mais profundo e contextualizado na cultura kaingang. O grafismo indígena tem um aspecto representacional, e também tem o aspecto de um simbolismo sociocultural e até sobrenatural, vinculado ao sentido que tem na cosmologia desses povos.

De acordo com Dona Sueli, artesã da aldeia, os materiais mais usados no artesanato kaingang são cipó, taquaraçu, taquara bambu e a taquara mansa. A taquara mais usada para a confecção do balaio é taquaraçu; ela deve ser colhida no mês de março, porque depois cresce com espinhos (por isso é chamada de taquara selvagem ou taquara brava, enquanto a outra é a mansa) e o artesão pode acabar se machucando ao encostar nesses espinhos. A taquara mansa tem este nome porque ela não tem espinhos e é mais fácil de trabalhar. Dona Sueli informa que de 30 em 30 anos termina essa taquara, "apodrece tudo e aí não tem mais taquara. Quando termina, a gente usa só o cipó São João e a taquara mansa".

A família produz unida durante todo o processo: desde a coleta e o preparo da matéria-prima até o acabamento. Depois, as mulheres vão para a cidade vender. Durante os meses da pandemia, uma mesa de artesanato ficou em exposição na porta da aldeia.

A pandemia de Covid-19 em 2020 foi uma experiência duramente vivenciada no âmbito das aldeias de Rio Grande, exigindo uma adaptação e reformulação dos seus hábitos cotidianos. Pensando em termos de interculturalidade, importa atentar para a maneira como os indígenas percebem a pandemia, já que, historicamente, aldeias inteiras foram dizimadas por doenças em outras epidemias (de varíola, catapora, sarampo) que dizimaram muito mais indígenas do que não-indígenas no Brasil, desde o período colonial. Portanto, as populações indígenas, através de suas lutas e lideranças, têm em sua memória ancestral amplo conhecimento dos riscos da pandemia para as suas populações.

Nesse novo contexto, a comunidade acadêmica, a sociedade rio-grandina e os gestores públicos somaram esforços para garantir a segurança alimentar e as medidas de proteção sanitária, uma vez que o acesso aos territórios das aldeias tornou-se restrito, bem como a circulação dos artesãos pela cidade para vender seu artesanato.  

Em uma das ações, em parceria com o Projeto de Cultura de Revitalização e Difusão da Cultura Guarani e Kaingang de Rio Grande, da FURG, e a Coordenadoria Municipal de Políticas Públicas para os Povos Indígenas, surgiu a ideia de produzir máscaras para venda junto ao artesanato tradicional. Foram confeccionadas 100 máscaras de algodão com tecido duplo, e totalmente brancas para que, sobre elas, os indígenas nas aldeias pintassem o seu grafismo tradicional.

Os artesãos indígenas customizaram as máscaras com grafismos, desenhos e palavras da sua cultura e língua. As vendas foram realizadas de forma online, através de grupos de WhatsApp e da divulgação nas redes sociais.

Texto: Letícia Ponso (docente/ILA/Neabi-FURG), Patrícia Gomes (mestra em Educação Ambiental) e Thaísa Freitas (acadêmica de Artes Visuais). Material elaborado no âmbito do Projeto de Extensão e Cultura "Revitalização e Difusão da Cultura Guarani e Kaingang em Rio Grande", Instituto de Letras e Artes – DAC – Proexc – FURG, em parceria com o Conselho Municipal dos Povos Indígenas. 

 

Galería

Artesãos customizam máscaras com grafismos, desenhos e palavras da cultura kaingang

Foto: Letícia Ponso