Elas na feira - histórias de mulheres: Rosélia Falcão

“As histórias são importantes. Muitas histórias são importantes”, disse Chimamanda Adichie, na conferência O perigo da história única, no TEDGlobal 2009. Inspirada pela escritora nigeriana e em sintonia com o tema escolhido pela 45ª Feira do Livro da FURG – histórias de mulheres, a Secretaria de Comunicação Social (Secom) da universidade apresenta o projeto Elas na feira, iniciativa que mostra relatos de (sobre)vivências femininas. Com uma câmera fotográfica e um gravador, captamos universos e o estar no mundo feminino pelas vozes de mulheres que passam pelo evento. O resultado é esta série de perfis singulares, que pode ser acompanhada aqui.

Rosélia Falcão

Sou a irmã do meio de três irmãos. Cresci ao lado dos meus dois irmãos. A minha mãe é dona de casa, com pouco estudo, ensino fundamental incompleto e meu pai é policial militar. A infância não foi nada fácil, de pouca grana, de uma família do campo. Meu pai e minha mãe trabalharam por muito tempo na agricultura. Uma família que sempre teve pouco, mas viveu com aquele pouco. Nasci em uma cidade chamada Santa Inês, no interior do Maranhão, no Nordeste. Cresci em um bairro de periferia, periferia mesmo, barra pesada. De ter gente comercializando droga em esquinas, à época. Vi amigos de infância morrerem, perdi amigos para o mundo das drogas, do tráfico. Estudei em escola pública e, no ensino médio, os três irmãos conseguiram bolsas em uma escola particular da cidade. Então, imagina o que foi se inserir na nova escola?

“Não sabia como viveria, mas fui, com a minha família apoiando com o que podia”.

Foi barra pesada. De não entender o mundo de riqueza, de esbanjamento. Sempre vivemos com pouco, com os cadernos contados, com o calçado do ano inteiro, até gastar, furar, para comprar outro. Me senti diferente, no sentido de me sentir excluída. Cheguei a pedir para o meu pai que me tirasse da escola, mas meu pedido não foi atendido. A partir de então, encontrei algumas pessoas que tinham semelhança comigo, que vinham de uma história parecida com a minha. Um grupo de quatro amigos. Até nos encontramos recentemente e comentávamos que um foi o bote salva-vidas do outro, todos na mesma frequência. Conclui o ensino médio na cidade de Santa Inês, prestes a fazer 18 anos, prestei vestibular para a Universidade Federal do Maranhão, para jornalismo. Passei. Só que eu não tinha ninguém na capital. Não sabia como viveria, mas fui, com a minha família apoiando com o que podia. Cheguei a morar com pessoas amigas da família e não deu muito certo. Por lá, quando tu sais do interior e vai morar em cidade grande, na casa de uma família, geralmente se tem uma troca, uma exigência de que tu sejas a doméstica da casa. As pessoas esperavam que eu estivesse indo para fazer os serviços de casa, de limpeza. Durante muito tempo eu vivi nessa situação sem falar pra família do que estava acontecendo. Sempre dizia que estava tudo bem e não tinha coragem de dizer que eu era a empregada doméstica da casa. Fiquei um ano assim.

“Muito peguei ônibus só com a passagem de ida para a universidade”.

Acabei descobrindo a possibilidade de concorrer a uma vaga na Casa do Estudante da universidade. Era muita gente para pouca vaga. Acabei conseguindo uma vaga em uma casa só de meninas, que ficava próxima à universidade. Por lá, vivi bons e maus momentos. Algumas recordações doloridas da convivência. De mulheres querendo se matar, de verdade. Morar lá era uma economia para a minha família, que conseguia me dar, por mês, R$ 100. Com isso, me virava para lanchar, para xerox, transporte. Muito peguei ônibus só com a passagem de ida para a universidade. Na volta, ficava antes da catraca, perto do ponto e avisava ao motorista que eu tinha esquecido o cartão. E, na verdade, os motoristas já conheciam a minha cara, da que esquecia o cartão. No fundo, sabiam que eu não tinha grana. Conclui a graduação. Jornalismo é uma área ferrenha, cheia de vaidades, de disputa de beleza. E, nesse meio, acaba não tendo muita amizade sincera entre os profissionais. Batalhei bastante trabalhando na capital, por cerca de dois anos. Fui pagar aluguel, mas a grana que eu ganhava como jornalista, só ficava com o aluguel, mesmo. Aquele problema de não reconhecerem devidamente a profissão, de não pagarem o piso salarial.

“tentei Direito e parei aqui, em Rio Grande”.

Cheguei a um momento de desilusão. Precisava de retorno financeiro, meu pai já era aposentado e eu precisava ajudá-los. Voltei para a minha cidade natal, dei aula de oratória no Senac. Eu nunca tinha dado aula na vida. Foi muito legal, uma experiência que me despertou para a docência e tento encaixar isso nos meus projetos futuros. Decidi fazer o Enem de novo, tentei Direito e parei aqui, em Rio Grande. Recomecei em 2013, quando cheguei. Distribui muito currículo, fui bem recebida em alguns lugares e mal recebida em outros. Apareceu concurso para a Prefeitura de Rio Grande, fiz e passei. Foi uma surpresa. Meus pais pularam de alegria, todo mundo se abraçou, chorou.

“E quando eu estou em casa, levo a mensagem de que todos devem ter os mesmos direitos e deveres dentro de uma casa”.

A minha mãe teve uma criação completamente patriarcal. De que mulher tem que servir o marido, os filhos e isso. Hoje em dia, minha mãe vive muito doente por todo esse trabalho de casa, por toda dedicação. Ela se desgastou. Eu olhava para ela e pensava que não queria o mesmo para mim. Vivemos muitos embates, tivemos uma relação fria por muito tempo. Mas a nossa relação mudou, para melhor. E quando eu estou em casa, levo a mensagem de que todos devem ter os mesmos direitos e deveres dentro de uma casa. Ela olha diferente para mim. Sinto que ela se sente representada por mim. Conseguimos nos aproximar e, hoje, nos fortalecemos.

Foto: Karol Avila

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